O cacau (Theobroma cacao) é um negócio multibilionário. Essa cultura tropical depende muito da polinização animal para o desenvolvimento dos frutos e a produção de sementes. A falta ou a ineficiência dos polinizadores naturais nas plantações de cacau levou os agricultores a buscar alternativas, como a trabalhosa polinização manual.
Uma alternativa até agora não testada, que tem recebido cada vez mais atenção nos últimos anos, é a polinização direcionada de culturas por meio de abelhas nativas manejadas. No entanto, devido à pequena dimensão das flores do T. cacao, bem como às barreiras estruturais que impedem o acesso de insetos grandes ao estigma, apenas abelhas minúsculas podem ser uma opção viável para a polinização direcionada do cacau. No presente estudo, investigamos se as pequenas abelhas sem ferrão (Apidae, Meliponini) poderiam ser consideradas como polinizadores gerenciados da cultura do cacau, especialmente em agroflorestas sombrias.
Entre as 188 espécies de meliponíneos nativas da região amazônica brasileira, que compreende uma parte importante do centro de origem de T. cacao, selecionamos 52 espécies com base em critérios morfológicos (distância intertegular ≤ 1,4 mm; comprimento do corpo: 2,2-6,0 mm). Importantes para a produção de cacau, alguns desses Meliponini têm ampla distribuição geográfica, ocorrendo tanto no centro de origem da T. cacao quanto fora dele (centros de produção de cacau no Brasil: Pará: 35 spp., Bahia: 10 spp.).
Presumivelmente, todas as espécies podem estar ativas em níveis de iluminação abaixo daqueles encontrados em plantações de cacau muito sombreadas, pelo menos nos momentos em que as anteras apresentam deiscência total e durante a receptividade máxima do estigma. O potencial das abelhas para forragear em regimes de luz reduzida é corroborado pela constatação de que entre 20 e 60% das fontes de alimento exploradas naturalmente são vegetação rasteira, incluindo ervas, subarbustos, arbustos e cipós.
Muitos dos Meliponini selecionados constroem seus ninhos, pelo menos facultativamente, em cavidades de árvores, o que facilita sua transferência para colmeias racionais e, portanto, o uso de colônias gerenciadas na polinização direcionada de culturas. As próximas etapas importantes para validar o potencial dessas pequenas abelhas sem ferrão na polinização direcionada do cacau devem incluir estudos detalhados sobre seu comportamento de forrageamento e capacidade de aprendizagem olfativa.
No Brasil, a bioeconomia emerge como um novo paradigma de desenvolvimento econômico, baseado no uso sustentável da biodiversidade para a geração de riqueza, com inclusão e justiça social, respeitando os povos tradicionais. Para viabilizar esse modelo, é essencial mobilizar recursos públicos e privados em larga escala para garantir o financiamento necessário à bioeconomia.
Nesse sentido, pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisaram e quantificaram os fluxos financeiros já desembolsados que impulsionaram a bioeconomia no Brasil entre 2021 e 2023. Foram identificados os valores direcionados por fontes de recursos públicas e privadas tanto domésticas quanto internacionais. Também foram especificados os canais de desembolso, os instrumentos financeiros utilizados e os setores financiados.
Através desse exercício, é possível acompanhar a evolução dos recursos, avaliar se estão crescendo de forma compatível com a Estratégia Nacional de Bioeconomia,[1] identificar lacunas de financiamento e desenhar estratégias de investimento mais efetivas para fomentar inovações que valorizem produtos compatíveis com a floresta e demais formas de vegetação nativa e que impulsionem a economia justa, resiliente e de baixo carbono no país.
Para fins desse mapeamento, bioeconomia está sendo considerada em seu sentido amplo, como um modelo produtivo que se baseia no uso de recursos biológicos e renováveis para a produção de alimentos, energia, insumos, materiais e outros bens e serviços. Nesse conceito mais amplo, bioeconomia abrange diversos setores, incluindo agricultura e extrativismo de culturas nativas, floresta plantada, biotecnologia, bioprodutos, bioenergia e biocombustíveis. O resultado desse mapeamento identifica instrumentos consolidados que financiam setores da bioeconomia com valores expressivos, contando com vasta participação de atores privados e importante atuação do poder público. O aprofundamento sobre esses instrumentos e o papel dos atores financeiros nessa agenda demonstra que é possível ampliar o financiamento para setores estratégicos da bioeconomia, hoje subfinanciados.
Fluxos de Financiamento Climático para Bioeconomia no Brasil, 2021-2023
Nota: Os valores referem-se à média, em bilhões de reais, para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023. Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024
Fluxos de Financiamento
Três quartos do financiamento estão fluindo para os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis, mas há desafios para promover a bioeconomia baseada em produtos oriundos da biodiversidade.
• O financiamento para bioeconomia no Brasil teve uma média de R$ 16,6 bilhões/ano entre 2021 e 2023.
• Conjuntamente, os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis foram os principais destinatários desse financiamento, tendo recebido, em média, R$ 12,3 bilhões/ano, o que equivale a 74% do total mapeado no período.
• O setor de floresta plantada concentra-se no financiamento para projetos de eucalipto e é responsável por 40% do total mapeado no período, R$ 6,6 bilhões/ano. Esse montante está concentrado em grandes projetos, com uma única empresa (Suzano) sendo responsável por 71% desse valor, através de três títulos temáticos e de um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).
• O setor de bioenergia e biocombustíveis é responsável por 34% do financiamento para bioeconomia no país, o que equivale a R$ 5,7 bilhões/ano. Instrumentos de financiamento inovadores — Créditos de Descarbonização (CBIOs) e títulos temáticos — representaram 87% desse valor, enquanto o BNDES contribuiu com 13%.
• Por outro lado, produtos oriundos da biodiversidade brasileira receberam R$ 1,4 bilhão/ano (9%), agricultura familiar recebeu R$ 1,4 bilhão/ano (8%), florestas nativas receberam R$ 0,92 bilhão/ano (6%) e políticas públicas que abarcam a agenda de forma transversal, tais como regularização fundiária e investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), receberam R$ 0,49 bilhão/ano (3%).
Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023. Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024
Fontes de Recursos
Fontes privadas domésticas são responsáveis por 69% do financiamento para bioeconomia, mas parte relevante desses recursos são direcionados por políticas públicas.
• A maior parte dos recursos mapeados vieram de fontes domésticas (R$ 16 bilhões/ano), que canalizaram 96% do financiamento. Desse montante, 69% (R$ 11,5 bilhões/ano) provêm de recursos privados. Contudo, o setor público tem papel importante dentro desses gastos por direcionar recursos oriundos de fontes privadas através de políticas públicas, como o crédito rural privado e os CBIOs, que, juntos, representam 31% do financiamento mapeado.
• Os recursos internacionais representaram 4% do total mapeado (R$ 0,58 bilhão/ano) e foram majoritariamente provenientes de governos internacionais — com destaque para os governos da Alemanha (43%) e Noruega (34%) — e de fundos climáticos internacionais (14%), tendo sido canalizados, principalmente, por meio de crédito de baixo custo e doações. Esses fluxos internacionais representam a principal fonte de recursos para o setor de florestas nativas.
Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023. Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024
Instrumentos Financeiros
Instrumentos inovadores (títulos temáticos e CBIOs) representam 56% do financiamento para bioeconomia, mas são utilizados exclusivamente para os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis.
• Títulos temáticos são responsáveis por alavancar recursos privados para a agenda de bioeconomia e representam o principal instrumento financeiro mapeado, tendo captado R$ 6,4 bilhões/ano (38%). Os títulos temáticos foram utilizados para captar recursos para os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis.
• O crédito rural é o segundo instrumento financeiro mais relevante, tendo canalizado R$ 3,8 bilhões/ano, o equivalente a 23% dos fluxos mapeados no período. Dos recursos via crédito rural para bioeconomia, 36% foram canalizados pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), linha que atende os agricultores familiares.
• Os CBIOs[2] representam um instrumento criado por política pública para distribuidores de combustível comprarem créditos de descarbonização, incentivando a produção e o consumo de biocombustíveis e financiando a descarbonização do setor de transportes. Entre 2021 e 2023, CBIOs mobilizaram R$ 3,1 bilhões/ano, 18% do total mapeado.
• Crédito de baixo custo foi responsável por canalizar R$ 1,8 bilhão/ano, o que equivale a 11% do que foi mapeado no período, sendo que a maior parte do recurso foi concedida pelo BNDES (86%). Os financiamentos do Banco se concentraram nos setores de bioenergia e biocombustíveis e de floresta plantada que, conjuntamente, representam 81% dos recursos do BNDES mapeados para bioeconomia. O Banco desempenha o papel de financiador por crédito de baixo custo, totalizando R$ 1,6 bilhão/ano (55%). Além disso, o BNDES também é financiador do crédito rural, totalizando R$ 1,2 bilhão/ano (44%), e gestor do Fundo Amazônia, com um total de R$ 0,02 bilhão/ano (1%).
• As despesas do orçamento público federal para financiar a bioeconomia totalizaram, em média, R$ 0,83 bilhão/ano (5%). Esses recursos são majoritariamente destinados a apoiar políticas públicas transversais para a agenda de bioeconomia (58%), com destaque para a regularização fundiária e financiamento de pesquisa e desenvolvimento. O orçamento público também tem um papel fundamental para financiar o setor de florestas nativas (33%), sendo responsável por custear despesas dos órgãos cuja atuação é fundamental para a execução de ações relacionadas à bioeconomia — em especial a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) — e despesas voltadas à proteção de povos e comunidades tradicionais.
Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023. Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024
Crédito Rural e Produtos da Biodiversidade
O crédito rural é um instrumento consolidado de financiamento nacional, mas o financiamento para produtos da biodiversidade via crédito rural equivale a apenas 2% do montante canalizado para soja entre 2021 e 2023.
Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023. Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, 2024
• O mapeamento do financiamento dos produtos da biodiversidade se concentrou na análise do crédito rural, que representa 99% dos recursos para o setor. Embora haja investimento relevante em produtos da biodiversidade através desse instrumento, ele é significativamente menor em comparação com outros produtos financiados pelo crédito rural. Enquanto a soja recebe R$ 84,4 bilhões/ano, bovinos R$ 75,6 bilhões/ano, milho R$ 36,3 bilhões/ano e café R$ 17,9 bilhões/ano, produtos da biodiversidade canalizaram apenas R$1,4 bilhão/ano.
• A partir do levantamento das culturas agrícolas financiadas pelo crédito rural, observamos 31 produtos oriundos da biodiversidade brasileira.[3]
• Dentre esses produtos, os que mais receberam financiamento via crédito rural foram a mandioca, totalizando R$ 580 milhões/ano (41%); o cacau, totalizando R$ 140 milhões/ano (10%); a seringueira, totalizando R$ 132 milhões/ano (9%); e o açaí, totalizando R$ 121 milhões/ano (8%). Juntos, esses produtos representam 68% do total do setor. Embora em menor escala, maracujá, abacaxi, erva-mate, carnaúba, palma, caju, castanha-do-Pará e pupunha também receberam, em conjunto, R$ 438 milhões/ano via crédito rural nas diversas regiões do Brasil (31% do total do setor).
• A Região Sul foi a que mais recebeu financiamento para produtos da biodiversidade no período de 2021 a 2023, concentrando 30% do total. A mandioca, originária da Amazônia, mas cultivada em todo o país, obteve a maior parte do financiamento (72%). O Paraná é o segundo maior produtor da raiz, por meio de agricultura intensiva em tecnologia, e o maior produtor dos derivados industriais, como a fécula de mandioca.[4]
• A Região Nordeste foi a segunda destinatária do financiamento, rerecebendo 26% do total, com destaque para a produção de cacau na Bahia. Em terceiro lugar, encontra-se a Região Sudeste, tendo recebido 21% no período, sendo a seringueira o segundo produto a canalizar mais financiamento na região (33%). Isso se justifica pelo fato de São Paulo ser o maior produtor de borracha natural no Brasil, acomodando grande parte da cultura de seringueira no Sudeste, apesar de ser uma árvore originária da região Amazônica.
• Embora a bioeconomia baseada em produtos da biodiversidade seja crucial para o desenvolvimento sustentável na Amazônia, a Região Norte obteve apenas 12% de financiamento para produtos da biodiversidade entre 2021 e 2023, ficando à frente apenas do Centro-Oeste (11%). A castanha-do-Pará, insumo típico da Região Norte que possui extrema importância ecológica, econômica e social, recebeu somente R$ 17,98 milhões/ano.
Metodologia
Este é um mapeamento inicial de fluxos financeiros para bioeconomia no Brasil, tomando como ponto de partida metodológica e de base de dados o Panorama de Financiamento Climático para Uso da Terra no Brasil.[5] A abordagem metodológica é baseada na experiência internacional do CPI em mapear o financiamento climático globalmente há mais de 10 anos, no Panorama Global de Financiamento Climático,[6] e adaptada para o cenário brasileiro. Para mapear o financiamento de bioeconomia no Brasil, parte-se dos conceitos da publicação “Bioeconomia na Amazônia: Análise Conceitual, Regulatória e Institucional”.[7]
A partir desse marco teórico para bioeconomia, os dados de uso da terra foram filtrados e categorizados. Este mapeamento, portanto, não exaure os recursos existentes por dois motivos:
• Há recursos para bioeconomia que extrapolam o recorte de uso da terra, especialmente quando analisados os gastos em pesquisa e desenvolvimento; • As fontes de dados com a transparência necessária para tal análise são limitadas, especialmente do mercado privado de capitais e de crédito. Ademais, as bases de crédito rural não permitem identificar o método de produção de forma a avaliar a sustentabilidade dos produtos da biodiversidade.
Portanto, esta publicação serve como um ponto de partida para compreender o estado do financiamento para bioeconomia no Brasil, reconhecendo que existem fluxos adicionais que não estão contemplados nesta análise.
[1] Decreto nº 12.044, de 5 de junho de 2024 – Institui a Estratégia Nacional de Bioeconomia. bit.ly/4g65CnF.
[2] O CBIO é um instrumento estabelecido em 2019 pela Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio). Cada CBIO corresponde a uma tonelada de carbono equivalente evitada, emitida por produtores e importadores de biocombustíveis. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustível (ANP) determina metas individuais, anuais e compulsórias de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs) para distribuidores de combustíveis a serem cumpridas pela compra de CBIOs.
[3] A classificação dos produtos da biodiversidade brasileira aqui apresentada se deu com base nos produtos previstos na Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMBio) e em consultas realizadas no Flora e Funga do Brasil – Reflora, administrado pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O levantamento das culturas agrícolas financiadas pelo crédito rural apontou somente o nome popular das espécies. A partir dessa informação, foi realizada a conversão pelo nome científico para consulta no Reflora, com o intuito de verificar quais espécies mapeadas são consideradas nativas. Com base nisso, foram listados 31 produtos oriundos da biodiversidade brasileira: açaí, amora, andiroba, aroeira (pimenta-rosa), baru, cacau, cajá, caju, camapu, carnaúba, castanha de baru, castanha de caju, castanha-do-Pará, cupuaçu, erva-mate, guaraná, guariroba, jabuticaba, macaúba, mandioca, mangaba, maracujá, palma, palmeira, palmito (pupunha, açaí), pupunha, seringueira, taperebá, tucum, umbu e urucum.
[4] Conab. Mandioca – Análise Mensal – Maio 2024. 2024. Data de acesso: 4 de setembro de 2024. bit.ly/3Mz68Nu.
[5] Chiavari, Joana et al. Panorama de Financiamento Climático para Uso da Terra no Brasil. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2023. bit.ly/PanoramaUsoDaTerra.
[6] Buchner, Barbara et al. Global Landscape of Climate Finance 2023. Climate Policy Initiative, 2023. bit.ly/47h7kyn.
[7] Lopes, Cristina L. e Joana Chiavari. Bioeconomia na Amazônia: Análise Conceitual, Regulatória e Institucional. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2022. bit.ly/BioeconomiaNaAmazonia.
Este trabalho é financiado por Norway’s International Climate and Forest Initiative (NICFI). Nossos parceiros e financiadores não necessariamente compartilham das posições expressas nesta publicação. Os autores gostariam de agradecer o suporte para a pesquisa de Augusto Monnerat, Eduardo Minsky e Renan Florias. Também gostaríamos de agradecer Natalie Hoover El Rashidy, Giovanna de Miranda e Camila Calado pelo trabalho de revisão e edição de texto e Nina Oswald Vieira e Meyrele Nascimento pelo trabalho de design gráfico.
Por Jacques Marcovitch, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP, e Adalberto Luiz Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Publicado em 08/08/2024 no Jornal da USP
Milhões de vidas estão em situação de risco iminente na Amazônia, conforme alertas da Fiocruz e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Dois temas, insegurança alimentar e insegurança pública, estão aqui apresentados lado a lado, porque revelam interdependência: para a descontaminação dos rios, a preservação ambiental e a garantia do bem-estar da população, é essencial a erradicação da violência e o combate ao crime.
Insegurança alimentar
O relatório da Fundação Oswaldo Cruz, coordenado pelos cientistas Paulo Cesar Basta e Sandra de Souza Hacon, é um guia para estudos imediatos. Todos os dias, milhões de habitantes ribeirinhos da Amazônia, um dos maiores ativos ambientais do planeta, se nutrem de alimentos contaminados. O peixe, sua alimentação básica e cotidiana, é contaminado pelo mercúrio despejado nos rios que atravessam a região. Morte lenta e gradual, ocasionada por mãos assassinas de bandidos em busca de ouro. Para facilitar seu trabalho, os garimpeiros ilegais derramam esse metal líquido prateado, denso e fatal, nas principais reservas de água doce do mundo.
Imagens captadas pela organização MapBiomas revelam que as bacias mais afetadas pelo assoreamento dos rios e contaminação das águas foram as do Amazonas (o famoso rio-mar), Tapajós, Teles Pires, Jamanxim e Xingu. Em 2022, o garimpo ilegal teve um incremento de 265% em relação aos anos anteriores. Isso significa uma área de 35 mil hectares. Para que se tenha ideia da monumentalidade criminosa, basta dizer que as leis ambientais brasileiras não permitem que cada concessão ultrapasse cinquenta hectares. Isso mesmo, apenas cinco dezenas. Mas, durante quatro anos, todas as leis e multas foram, na prática, anuladas.
Quatro instituições – Fiocruz, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Evandro Chagas e Universidade Federal de Roraima (UFRR) uniram-se em um estudo sobre a contaminação dos rios no território indígena Yanomami. Os peixes recolhidos em vários pontos da bacia do Rio Branco tinham concentrações de mercúrio bem maiores ou no limite fixado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Foi detectado que os peixes barba-chata, coroataí, filhote, piracatinga e pirandirá, carnívoros, apresentam riscos elevadíssimos, e deles somente podem ser consumidos cinquenta gramas, uma vez por mês. Também apresentam alto risco os peixes dourado, mandubé, pescada, tucunaré e piranha-preta, requerendo baixo consumo.
Em síntese, a presença de garimpos em terras indígenas não traz riqueza e desenvolvimento às comunidades. Pelo contrário, deixa um legado de enfermidades e problemas ambientais que contribuem para perpetuar o ciclo de pobreza, miséria e desigualdade na Amazônia.
O que fazer?
O que é urgente e efetivo é a proteção integral dos rios. Isso quer dizer aumento da fiscalização, bloqueio das vias de acesso do garimpo, destruição das pistas de pouso, veículos e maquinário dos infratores, além de prisão em flagrante. Estas práticas, naturalmente, devem ser levadas a efeito em paralelo com a busca de tecnologias limpas.
Por meio do Global Mercury Partnership, almeja-se a disseminação de boas práticas para a descontaminação das águas na região. Merece destaque a experiência praticada nos arredores do Tapajós, onde os mineiros locais são treinados visando à redução do uso do mercúrio e à recuperação ambiental.
Instituições do saber científico no Brasil unem-se na defesa da Amazônia. USP, UFPA e Inpa e abordam no Pensa Brasil 2024 as questões levantadas e outros desafios na região. A Embrapa Florestas, a Unicamp, a UFMT, a UEM e a Coogavepe pesquisam os efeitos de quatro bioextratos produzidos a partir de uma árvore nativa da Amazônia, conhecida como pau-de-balsa (Ochroma piramidale) como tecnologia livre de mercúrio na mineração de ouro.
Em complemento, pesquisadores da Chalmers University of Technology, na Suécia, conceberam um processo eletroquímico para tratar rios contaminados por mercúrio. A solução está em um eletrodo que atrai para si os metais pesados e purifica as águas. O novo método torna possível reduzir as impurezas em 99%. O trabalho foi publicado na revista Nature Comunications.
No que se refere à saúde, é preciso incluir médicos que abordem os efeitos da exposição crônica e aguda ao mercúrio, especialistas em saúde pública que analisem padrões de grandes populações e sociólogos e antropólogos que estudem os impactos decorrentes da prospecção e extração de ouro.
Insegurança pública
Na Amazônia brasileira, o cenário é preocupante e exige uma política de segurança pública em condições de cortar o mal pela raiz. Um desses estudos é Cartografias da Violência na Amazônia. Apoiado em mapas, quadros, gráficos e tabelas repletas de informações auditáveis, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta o território em disputa neste infernal mercado de violência, suas dinâmicas, redes, efeitos ambientais e sociais e capacidades a explorar para o seu urgente enfrentamento. A invasão do crime organizado ocupou 23% do território da Amazônia Legal, adotando procedimentos iguais ou até mais nocivos do que aqueles que essas mesmas facções aplicam nas favelas metropolitanas.
Este relatório oferece indicadores preocupantes: nas cidades caracterizadas como “urbanas” da Amazônia, a taxa de mortes por violência é de 35,1 por 100 mil habitantes, 52% a mais do que a média nacional, enquanto nos municípios ditos “rurais”, por sua proximidade ao campo, a taxa média de homicídios superou em 38% a média do País, chegando a 31%.
O feminicídio fez-se rotina na Amazônia e exige combate por todos os meios, que convergem, na justa medida, repressão, educação e, sobretudo, ações preventivas, além do pronto apoio às vítimas em situação de risco. Nos municípios amazônicos, este crime apresenta uma taxa de 1,8 para cada 100 mil mulheres – superior à sinistra média nacional, de 1,4 por 100 mil.
O que fazer?
Quando se fala em Política Nacional de Segurança, é imperiosa a urgência de um modelo específico para tratar os conflitos da Amazônia. A região, por suas peculiares características geográficas, econômicas, sociais e culturais, é como um país à parte, exigindo normas próprias, embora emanadas, como estabelece a Constituição, dos mesmos poderes centrais. Trata-se de um ecossistema a ser monitorado com dados mais precisos sobre demografia, trabalho e condições de vida, rastreabilidade e acesso aos benefícios por parte das comunidades das florestas dedicados à bioeconomia de produtos não madeireiros. A experiência de uma “Casa de Governo”, instalada para monitorar as invasões de garimpeiros, poderia ser replicada no território amazônico para desconstruir as ações do crime organizado.
Conclusão
Promover o bem-estar humano e a conservação da natureza na Amazônia é a missão da Estratégia Nacional de Bioeconomia, instituída no Decreto 12.044 de 5/6/24. Trata-se de uma estratégia para o fortalecimento das cadeias de valor sustentáveis, visando estimular atividades geradoras de emprego e renda para os habitantes da floresta, permanentemente ameaçados pelo crime organizado e envenenados pelo mercúrio espalhado nos rios. A implementação da Estratégia Nacional de Bioeconomia depende da articulação de esferas de governo, incluídos os órgãos responsáveis pela segurança pública, com organizações da sociedade civil e entidades privadas. Uma articulação que exige governança adequada para eleger prioridades, determinar responsabilidades e selecionar métricas de monitoramento para a ampla divulgação dos seus resultados e impactos.
________________ (As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)
No dia 12 de agosto, foi realizada, no auditório da Biblioteca Brasiliana Mindlin, a abertura da terceira edição do evento multidisciplinar USP Pensa Brasil, coordenado pela vice-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda. A conferência de abertura foi realizada pelo reitor da Universidade Federal do Pará, Emmanuel Zagury Tourinho, discorrendo sobre múltiplos aspectos das implicações sobre o meio ambiente na Amazônia.
Tourinho iniciou sua fala destacando as relações de parceria entre a USP e a UFPA e mencionou a importância para o Brasil da realização da Conferência das Partes sobre Meio Ambiente, a COP 30, que ocorrerá em Belém, Pará, Amazônia, em novembro de 2025. Comentou, também, sobre quatro pontos de relevo para se pensar a Amazônia, que são:
(1) a complexidade da realidade amazônica; (2) o ponto de não retorno dos sistemas socioculturais que têm mantido a floresta em pé; (3) os riscos dos novos modelos de bioeconomia; (4) e a não coincidência entre energia limpa e sustentabilidade.
Por fim, ele indicou que estes quatro temas podem ser um ponto de partida para a construção de agendas de pesquisa colaborativa entre universidades amazônicas e não amazônicas, em particular entre a UFPA e a USP.
Leia na íntegra a fala do professor Tourinho:
A cooperação entre as universidades para a promoção da agenda da sustentabilidade
Nesta abertura da terceira edição do Seminário USP Pensa Brasil, que tem como tema a COP 30, tratarei da colaboração entre as nossas universidades e, em particular, do que uma universidade da Amazônia, como a Universidade Federal do Pará, tem a oferecer no debate colaborativo sobre a questão ambiental e a crise climática. Peço licença para fazer isso reiterando algumas observações que apresentei em momentos recentes.
Começo dizendo que as relações entre UFPA e USP têm enorme valor para o fortalecimento da pesquisa na Amazônia e avançaram muito nos últimos tempos, tanto em extensão quanto em qualidade. Somos duas das maiores universidades brasileiras – a USP é a nossa maior Universidade pública; e a UFPA é a segunda maior universidade federal do país, além de ser a maior instituição acadêmica e científica de toda a Pan-Amazônia.
Somos, também, as duas maiores produtoras de ciência sobre a Amazônia (segundo a Web of Science, principal base de dados internacional) e estamos entre as cinco maiores instituições do País em número de programas de pós-graduação, onde grande parte da ciência brasileira é produzida. Além disso, nossas duas universidades deram início a novos projetos que buscam sintonia com grandes desafios da Amazônia e do País hoje: a UFPA criou o Cisam, o Centro Integrado da Sociobiodiversidade da Amazônia; e a USP criou o Ceas, o Centro de Estudos da Amazônia Sustentável.
No caso do Cisam, acrescento que envolve a formação e consolidação de oito redes temáticas, cooperativas em pesquisa e extensão, com participação de pesquisadoras(es) das 13 universidades federais sediadas na Amazônia.
Penso que a interação entre o Cisam/UFPA e o Ceas/USP pode gerar experiências modelares sobre a cooperação nacional com foco na Amazônia e, para tanto, partimos do reconhecimento mútuo da capacidade científica. Houve uma época em que uma cooperação mais intensa era improvável, pois havia restrita capacidade de fazer ciência na Amazônia. Hoje, esse cenário mudou. Temos instituições muito fortes e um sistema de pesquisa e de pós-graduação robusto na região.
Nossas capacidades são complementares e nossas ações podem contribuir substancialmente não apenas para nos colocar adiante na fronteira do conhecimento em muitas áreas, mas também, e muito importante, para dar à sociedade brasileira condições de compreender e tomar as decisões corretas em políticas públicas que impactam o futuro do País e, em particular, o destino das populações que vivem no território amazônico. Pensamos, na UFPA, inclusive, que empoderar, com ciência, as populações locais para a defesa de seus direitos e de seus territórios constitui uma das principais contribuições que a ciência na Amazônia pode dar.
Assim, embora o tema da COP 30 seja bem mais abrangente, limito minhas considerações ao que acontece na Amazônia. A contribuição diferencial que pesquisadoras e pesquisadores da Amazônia têm a oferecer relaciona-se à maior familiaridade que possuem com a realidade regional, construída ao longo da convivência com o ambiente natural e com as populações amazônicas, com as consequências dos projetos lá implementados nas últimas décadas para a exploração de suas riquezas e com as carências e ameaças que são o cotidiano de seus povos.
O que chamamos de Amazônia, vista de perto, são muitas Amazônias, compostas por grande diversidade de paisagens, de arranjos socioespaciais, de dinâmicas sociais e territoriais, de populações e povos com culturas e entendimentos próprios acerca do que somos e do que deve ser o nosso futuro.
Destaco brevemente quatro pontos que ilustram os desafios de pensar a Amazônia, começando pelo tema da complexidade da região. Uma imagem sugerida pela professora Ana Cláudia Cardoso, pesquisadora da UFPA, ilustra bem este ponto. Segundo ela, os esforços para compreender e definir estratégias de intervenção na Amazônia são comparáveis à tentativa de resolução de um cubo mágico. Tenta-se ajustar um ou outro pedaço do quebra-cabeça e, “quando a solução parece próxima, percebem-se as demais facetas do objeto incompletas”.
Questões ambientais na Amazônia estão, por exemplo, intricadamente articuladas a questões fundiárias, a problemas de saúde pública, a sistemas de transporte, ao acesso à educação e segurança, dentre outros.
A dificuldade de lidar com a complexidade da realidade amazônica é inescapável para todas as pessoas e instituições que voltam suas vistas para a região e está presente em atividades de toda ordem, sejam elas científicas, de formulação e execução de políticas públicas, ou mesmo de apoio a projetos concebidos por atores locais. Há necessidade de reconhecer que os problemas complexos da Amazônia requerem soluções originais e não prontamente acessíveis. Importar soluções de outros contextos tem sido uma receita certa de fracasso em muitas políticas concebidas para a região.
Além disso, o tempo representa uma pressão complicadora. É urgente salvar a floresta, mas não é possível fazê-lo de uma hora para outra, nem mexendo em apenas umas poucas peças do cubo. É preciso modelar soluções e não há consenso sobre o recorte adequado para o início da modelagem: se determinados problemas, determinadas faixas territoriais, determinadas populações alvo etc.
O segundo ponto diz respeito diretamente às dinâmicas de vida das populações. A COP tem como foco a questão climática e há consenso internacional sobre a importância da Floresta Amazônica para conter o aquecimento do planeta com serviços ecossistêmicos, como sequestro e armazenamento de carbono, e produção e distribuição de chuvas (rios voadores).
Hoje, há reconhecimento e algum consenso sobre o papel das comunidades tradicionais na conservação do bioma. Sem o conhecimento ancestral e as práticas históricas de manejo e conservação da floresta desenvolvidas por populações indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhas, será muito improvável manter a floresta de pé. As pressões que essas populações sofrem hoje, no entanto, acendem um alerta que gostaria de formular com uma analogia ao que se fala sobre a floresta.
Há uma preocupação global com o eventual ponto de não retorno da Floresta Amazônica, algo previsto para ocorrer daqui a pouco mais de duas décadas. Nas condições atuais, é certo que ocorrerá. Mas há, além disso, outro risco. Estamos muito próximos de um ponto de não retorno do tecido social das populações amazônicas, dos sistemas culturais que exerceram o papel de alicerce para arranjos que sustentaram a floresta em pé por séculos. A lógica das transformações em curso, por vários caminhos, mas, especialmente, pela insegurança fundiária, tende a romper as conexões dessas populações com seus territórios, a afastá-las das terras que têm ocupado ou a forçá-las a um uso diverso do que tem sido a regra e do que garante a integridade do bioma.
São parte do cotidiano de quem vive nas entranhas da Amazônia a ameaça de perda do território com o avanço da fronteira do agronegócio, com todas as suas implicações; a contaminação dos rios por mercúrio e, como decorrência, das pessoas que vivem e se alimentam dos rios; a contaminação de rios e florestas por resíduos da atividade legalizada de exploração e produção mineral; a invasão de terras indígenas e quilombolas por grileiros, garimpeiros ilegais e outros criminosos; doenças endêmicas como malária, febre amarela, tuberculose e hanseníase; conflitos fundiários, com assassinato frequente de lideranças indígenas, quilombolas, de trabalhadores rurais e defensores de direitos humanos; e o tráfico de drogas. Isso tudo associado a alguns dos piores indicadores sociais, onde apenas 50% das residências recebem água tratada e pouco mais de 20% estão ligadas a uma rede de esgotamento sanitário.
Ninguém pode dizer que a floresta permanecerá de pé com a desorganização das comunidades tradicionais, seus deslocamentos forçados, seu assassinato deliberado, seu adoecimento em massa ou sua submissão a outros sistemas de organização social e econômica. Proteger esses sistemas sociais é tão urgente quanto proteger as árvores.
Como a atenção do mundo não se volta com a mesma intensidade para esta dimensão do “risco amazônico”, está muito mais sob a nossa responsabilidade garantir que seja adequadamente considerado. Também, por isso, as populações da Amazônia precisam ter poder de decisão sobre novos projetos para a região e precisam ser beneficiárias diretas desses projetos, não apenas receber “compensações”.
O terceiro ponto relaciona-se diretamente às pressões sofridas pelas populações tradicionais, em suas articulações com a atual ênfase na “bioeconomia” como solução para sua sobrevivência. O aproveitamento sustentável de produtos da floresta e dos rios sempre foi base de sustentação de comunidades amazônicas. Todavia, a bioeconomia que, por séculos, esteve vigente, era uma espécie de sociobioeconomia, em que a natureza e a sociobiodiversidade eram conservadas, com alta taxa de apropriação, pelas próprias comunidades, dos recursos financeiros gerados. O que se coloca em debate agora é, com frequência, algo muito diferente, por exemplo articulado à industrialização de produtos da floresta ou à expansão do comércio para um mercado global, gerando divisas internacionais, o que envolve um risco de reprodução do que assistimos em outros ciclos de exploração de riquezas da Amazônia. A mudança em curso não acontecerá sem consequências.
Bioeconomia significa abordagens diversas para o aproveitamento dos recursos da biodiversidade. Gostaria de sugerir que essas abordagens variem ao longo de continuuns com gradientes variados de três componentes: (a) o aproveitamento econômico na exploração dos recursos; (b) a conservação da integridade dos ecossistemas; e (c) o fortalecimento de sistemas socioculturais. Esses três componentes compõem uma espécie de feixe de múltiplas variáveis, irredutíveis umas às outras e de complexa interconexão. Iniciativas que geram alto aproveitamento econômico dos recursos da biodiversidade podem ou não garantir a conservação da integridade dos ecossistemas e fragilizar sistemas socioculturais; podem ou não garantir, de modo imediato, alguma taxa de conservação do bioma, sem proteção dos sistemas socioculturais.
Se repetirmos experiências passadas, é muito provável que a biodiversidade da Amazônia venha a dar sustentação a projetos em bioeconomia com enorme sucesso econômico para os seus protagonistas financeiros, incluindo os que sempre ganham com os negócios na Amazônia. Isso pode (ou não) acontecer ao custo de maior degradação (ou não conservação) de partes importantes do bioma e, sobretudo, maior empobrecimento das populações locais, inclusive com novos movimentos forçados de migração para as periferias pauperizadas das vilas e cidades.
O quarto ponto que gostaria de citar relaciona-se a uma associação equivocada, por vezes estabelecida, entre energia limpa e renovável e sustentabilidade. Energia limpa é parte da agenda de enfrentamento da crise climática, por razões óbvias, e o Brasil orgulha-se de possuir uma das matrizes mais eficientes nesse terreno, baseada no enorme potencial das bacias hidrográficas do País, com destaque para a Amazônia. Na Amazônia, no entanto, há exemplos contundentes de construção de hidrelétricas com inundação de parcelas consideráveis de florestas, com deslocamentos forçados de populações tradicionais, com comprometimento das condições de vida dessas populações e com desestruturação de seus sistemas socioculturais.
Algo semelhante vem acontecendo com fazendas de energia eólica no Nordeste (que concentra 85% da produção nacional), que têm transformado para pior as condições de vida de comunidades pobres no raio de sua abrangência e impacto, além de consequências negativas para o bioma da Caatinga. Na Amazônia, já há evidências de que interferem com voos migratórios de algumas espécies.
A pergunta, então, é: essa energia é limpa para quem? Sustentável para quem? A questão energética permite ilustrar como a sustentabilidade é matéria que exige uma abordagem multidimensional e interdisciplinar, para muito além da descarbonização e da conservação do potencial de produção. Adiciono um elemento a essa problematização, que ilustra o ponto discutido anteriormente, sobre a complexidade da realidade amazônica.
A contaminação por mercúrio é hoje um dos mais graves riscos a que estão expostas as populações amazônicas e resulta, principalmente, da atividade mineral ilegal na região, algo que acontece em uma escala maior do que se pode imaginar. Pois bem, pesquisadores da Amazônia constaram que não apenas a proximidade às áreas de mineração ilegal favorece a contaminação por mercúrio. As barragens das hidrelétricas podem conter um potencial de agravamento do problema, na medida em que favorecem a concentração de bactérias que transformam o mercúrio em metilmercúrio, a versão mais perigosa do mercúrio, que passa a ser parte da cadeia alimentar.
Segundo os pesquisadores, “evidências recentes demonstraram que as populações que vivem perto de UHEs podem ter níveis de mercúrio no cabelo semelhantes ou até mais elevados do que os níveis encontrados em populações próximas a regiões de mineração. Estes dados apoiam a noção de que as barragens têm o potencial de mobilizar mercúrio e, consequentemente, contribuir para a contaminação ambiental e a exposição humana”.
Os quatro temas citados (a complexidade da realidade amazônica, o ponto de não retorno dos sistemas socioculturais que têm mantido a floresta em pé, os riscos dos novos modelos de bioeconomia e a não coincidência entre energia limpa e sustentabilidade) podem ser um ponto de partida para a construção de agendas de pesquisa colaborativa entre universidades amazônicas e não amazônicas, em particular, entre a UFPA e a USP.
Agradeço e parabenizo a USP por esta oportunidade de diálogo, na expectativa de que nossas instituições construam, em parceria, grandes contribuições da ciência brasileira para o enfrentamento do desafio climático e, nesse contexto, de conservação do bioma e de desenvolvimento social dos povos e populações da Amazônia.
Agência FAPESP – Elton Alisson, de Belém. Publicado em 12 de julho
A descoberta nas últimas décadas de milhares de sítios arqueológicos na Amazônia tem contribuído para mudar a perspectiva sobre o passado da maior floresta tropical do mundo. Esses locais, onde ficaram preservados os testemunhos e evidências de atividades de populações tradicionais, contudo, estão sob o risco de serem destruídos pelo avanço do desmatamento, do garimpo e das mudanças climáticas, entre outros fatores.
Por meio de tecnologias emergentes, como a de sensoriamento remoto aerotransportado “Lidar” (acrônimo em inglês para light detection and ranging), pesquisadores brasileiros, em parceria com povos da floresta, estão mapeando esses sítios arqueológicos em áreas ameaçadas da Amazônia, a fim de lhes conferir maior proteção.
Resultados preliminares do projeto, intitulado “Amazônia revelada”, foram apresentados em uma mesa-redonda realizada na terça-feira (09/07), durante a 76ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O evento vai até amanhã (13/07) no campus Guamá da Universidade Federal do Pará (UFPA), em Belém.
“A ideia é fazer sobrevoos usando essa tecnologia para identificar esses sítios arqueológicos e registrá-los em órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [Iphan] para que recebam uma camada adicional de proteção. No mínimo terá de ser feito algum tipo de licenciamento antes da realização de qualquer projeto [nas áreas onde estão localizados esses sítios]”, explicou Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).
Para realizar o mapeamento, os pesquisadores participantes do projeto, financiado pela National Geographic Society e apoiado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre outras instituições, inicialmente conversam com representantes das populações que vivem nos locais onde há evidências da existência de sítios arqueológicos para saber se há interesse ou não de que sejam mapeados.
“Não queremos pegar um avião e sair voando por aí porque seria, mais uma vez, uma forma de reproduzir práticas colonialistas científicas”, avaliou Neves.
Algumas das populações já consultadas e que deram aval para sobrevoos foram uma comunidade quilombola em Costa Marques e o povo indígena Amondawa da Aldeia Trincheira, em Rondônia. “Essa é uma região de muito conflito e que temos evidências de destruição de sítios arqueológicos decorrentes de ocupações recentes”, afirmou Neves.
Os pesquisadores pretendiam sobrevoar a região do Alto Xingu, mas cancelaram o plano após conversas com representantes do povo indígena Kuikuro. “Eles não queriam que sobrevoássemos por enquanto a terra deles porque a nossa ideia é tornar públicas as informações e não querem que outras pessoas saibam da existência daqueles locais que são importantes para eles”, contou Neves.
Com a mudança de planos, o novo local escolhido foi a ilha de Marajó, no Pará, onde há evidências de criação de estruturas artificiais. “Ao olharmos para escavações arqueológicas feitas na região, observamos uma série de cores diferentes que são camadas construtivas de aterros feitas por populações que ocuparam Marajó no primeiro milênio da era comum, a partir de mais ou menos 400 anos depois de Cristo, até o segundo milênio. Esses aterros foram construídos, ocupados e serviam como locais de cemitério”, contou o pesquisador.
Outra região que será sobrevoada é a Terra do Meio, no Pará, atravessada pelo rio Xingu e afluentes e formada por reservas, unidades de conservação e as terras indígenas Cachoeira Seca, Xipaya e Kuruya. Alvo de de garimpeiros ilegais, a região também sofre com desmatamentos e roubo de madeira.
“Nos juntamos ao ISA [Instituto Socioambiental], que tem feito um trabalho muito antigo naquela região, para realizar mapeamentos participativos comunitários. Os locais de sobrevoo foram decididos a partir de oficinas realizadas com os moradores da região”, relatou Neves.
Neves apresentou a pesquisa no dia 13 de julho, durante a Reunião Anual da SBPC (foto: Elton Alisson/Agência FAPESP)
Primeiros resultados
Em razão do grande número de queimadas na Amazônia no ano passado, não foi possível realizar a maior parte dos sobrevoos programados. Este ano, o trabalho foi iniciado mais cedo e já começou a produzir os primeiros resultados.
Por meio de sobrevoos feitos em uma região situada entre o Acre, o sul da Amazônia e Rondônia, foi possível identificar um sítio arqueológico composto por estruturas geométricas triangulares e circulares associadas a estradas.
“Estamos conseguindo demonstrar que essas estruturas geométricas vão muito mais ao norte do que se pensava. Elas atravessam o rio Purus, no sul do Amazonas, e talvez cheguem até o Solimões. Mas não sabemos ainda”, ponderou Neves.
Já na Serra da Muralha, em Rondônia, foi possível identificar outro sítio arqueológico, composto por uma muralha de pedra e estruturas de alvenaria associadas a uma estrada. Na região está localizado um dos maiores parques nacionais da Amazônia, o Mapinguaria, cuja extremidade oeste foi invadida por um garimpo em 2019.
“Queremos começar a fazer o registro desses sítios arqueológicos para patrimonializar esses locais e criar um caminho para proteger essas áreas ameçadas”, afirmou Neves.
De acordo com o pesquisador, atualmente há mais de 6 mil sítios arqueológicos cadastrados em toda a bacia amazônica. Na opinião dele, contudo, esse número está subestimado.
“Em qualquer lugar que a gente vá, no interior da Amazônia, nunca deixamos de achar um sítio arqueológico. A questão é saber o que fazer com eles.”
Na avaliação do pesquisador, é preciso pensar a Amazônia não somente como um patrimônio natural, mas também biocultural, como um produto da história das populações tradicionais que incluem não somente os povos indígenas, mas também populações quilombolas, ribeirinhas e beiradeiros, que vêm ocupando a região há pelo menos 13 mil anos.
“Essa ideia de pensar a Amazônia como um lugar histórico, não só como patrimônio natural, mas como patrimônio biocultural, serviu de base para as pesquisas arqueológicas e tem orientado nossas atividades na região nos últimos 30 anos”, disse o arqueólogo.
Resultados de estudos anteriores conduzidos por Neves com apoio da FAPESP podem ser encontrados em: agencia.fapesp.br/51197, agencia.fapesp.br/40304 e agencia.fapesp.br/39387.
Mais informações sobre a 76ª Reunião Anual da SBPC estão disponíveis em: https://ra.sbpcnet.org.br/76RA/.
Agência FAPESP* –José Tadeu Arantes | Agência FAPESP foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Uma forte denúncia sobre as condições de saúde da população infantil Yanomami foi publicada na revista Nature Medicine por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O artigo, assinado por Thiago dos Reis Araujo, Ana Paula Davel e Everardo Magalhães Carneiro, revela que as crianças dessa etnia estão atualmente enfrentando os déficits nutricionais mais graves entre as populações indígenas da América; que aproximadamente 570 crianças morreram de fome nos últimos quatro anos; e que, em 2022, 52,2% das crianças menores de 5 anos estavam desnutridas, um número muito acima da média global, de 29,1%.
A Terra Yanomami é a maior reserva indígena do Brasil. Em 2019, seu território sofreu aumentos substanciais de mineração ilegal, incêndios e desmatamento, sem qualquer medida efetiva de controle por parte do então governo federal. O conjunto de problemas acumulados levou o atual governo a declarar uma crise de saúde pública na área. “A ministra do Ministério dos Assuntos Indígenas no Brasil, Sônia Guajajara, destacou que as ações para melhorar o estado nutricional da população Yanomami são uma necessidade imediata. No entanto, a desnutrição, particularmente durante a infância, pode resultar em consequências de saúde de longo prazo e aumentar o risco de doenças na idade adulta. Esse risco persiste mesmo após a reabilitação nutricional”, afirma Davel.
E Magalhães Carneiro explica: “Pesquisadores da Universidade de Southampton, no Reino Unido, propuseram a hipótese do ‘fenótipo poupador’. Esta afirma que indivíduos expostos à desnutrição durante estágios críticos de desenvolvimento, como a vida intrauterina, a lactação e a primeira infância, são suscetíveis à formação e funcionamento prejudicados de vários órgãos, tornando-os mais vulneráveis a desenvolver doenças na idade adulta”.
Tal hipótese foi corroborada por dados da chamada “fome holandesa”, de 1944-1945. Nesse biênio, com os Países Baixos invadidos por tropas da Alemanha nazista, 4,5 milhões de pessoas sofreram de fome extrema. Os bebês nascidos durante o período ou pouco depois exibiram menor peso ao nascer e menor tamanho corporal. E, quando alcançaram a fase adulta, essas pessoas apresentaram propensão a vários problemas de saúde, resultantes de deficiências nutricionais, e maior taxa de mortalidade.
“A desnutrição infantil provoca várias modificações estruturais e funcionais, predispondo o futuro adulto a maiores prevalências de obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e distúrbios cognitivos e de personalidade”, afirma Magalhães Carneiro. Essa informação é muito importante, porque existe a falsa ideia de que, uma vez identificado um quadro agudo de desnutrição, basta alimentar bem ou superalimentar as pessoas afetadas para que tudo volte ao normal. “Ao contrário, a reabilitação nutricional deve ser conduzida com muito cuidado, porque os organismos não estão preparados para metabolizar grandes quantidades de nutrientes”, prossegue o pesquisador.
Um agravante é que os danos causados pela desnutrição crônica podem ser transmitidos de uma geração a outra. Estudos realizados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Manaus e no Rio de Janeiro já mostraram que as crianças Yanomami têm alta prevalência de nanismo associada à redução do tamanho materno.
O artigo afirma que “ações estratégicas são urgentemente necessárias para antecipar e mitigar as consequências de longo prazo da desnutrição para a saúde da população Yanomami”. E conclama governos, universidades, institutos de pesquisa e agências de financiamento a unificar esforços nesse sentido, lembrando que “qualquer intervenção nutricional ou estratégia deve ser planejada e culturalmente adaptada, bem como estendida a áreas e municípios próximos às comunidades Yanomami”.
Além disso, ressalta que as estratégias relativas à saúde da população Yanomami não podem ser desvinculadas da proteção territorial, de uma forte gestão ambiental, com o controle da mineração e da exploração de recursos naturais e de compensações socioambientais e políticas que protejam os direitos das terras indígenas.
Os três autores integram o Centro de Pesquisa em Obesidade e Comorbidades (OCRC) – um Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão (CEPID) da FAPESP sediado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Magalhães Carneiro é um dos pesquisadores principais da instituição e também coordena um Projeto Temático financiado pela FAPESP.
No Dia Mundial do Meio Ambiente, decreto cria uma Estratégia Nacional de Bioeconomia. Entre os objetivos da estratégia estão ampliar “a participação nos mercados e na renda de povos Indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares” e promover o desenvolvimento “a partir do uso dos recursos biológicos, de base ambiental, social e economicamente sustentáveis”.
O decreto prevê a indicação de uma Comissão Nacional de Bioeconomia, com a participação de pessoas do governo e da sociedade, para formular em apenas 60 dias um Plano Nacional de Desenvolvimento da Bioeconomia, a fim de pôr em prática a estratégia.
O plano definirá recursos, ações, responsabilidades, metas e indicadores para o setor. A comissão será indicada pelos ministérios do Meio Ambiente e Mudança do Clima, do Desenvolvimento e da Fazenda. Um Sistema Nacional de Informações e Conhecimento sobre a Bioeconomia, a cargo da pasta de Marina Silva, será criado para dar subsídios à implementação do plano.”
A apresentação é parte da matéria de Claudia Antunes para a revista Sumaúma, publicada em 10 de junho de 2024, “A grande disputa da bioeconomia.“
Esse video reúne clipes produzidos por organizações amazônicas, entrevistas com lideranças e imagens captadas pelas expedições de pesquisa realizadas pelos coautores do livro ‘Bioeconomia para quem? Bases para um Desenvolvimento Sustentável na Amazônia.’
Programa
16h30 – Recepção dos participantes na Sala Villa Lobos da BBM
17h00 às 18h30 – Seminário Bioeconomia na Amazônia Sala Villa Lobos do Espaço Brasiliana da Universidade de São Paulo.
Desafios e Conceitos de Produtos Florestais Não Madeireiros
Cadeias de valor do pirarucu, do cacau, da meliponicultura, do açaí
Meta-organizações e Inovações Sustentáveis
Biodiversidade nas práticas agrícolas dos povos indígenas
Bioeconomia e restauração florestal na Amazônia
Bioeconomia Amazônica e Cidadania
18h30 as 19h00Lançamento da obra coletiva “Bioeconomia para quem? Bases para um Desenvolvimento Sustentável na Amazônia no Auditório do Espaço Brasiliana da Universidade de São Paulo
Nesta obra, configura-se o engajamento voluntário na formulação de prioridades ambientais monitoradas por métricas, e alarga-se um debate que, antes, era restrito ao âmbito do Estado provedor. É cada vez mais oportuna e forte a presença da sociedade brasileira organizada neste campo de análise, que também mobiliza, em escala planetária, o interesse da comunidade científica internacional.
Lançado no ano do G20 Brasil e um ano antes da Cúpula Mundial do Clima, em Belém do Pará, este livro traz relevante contribuição de universidades e outras instituições públicas ao tema da bioeconomia, com ênfase na função inclusiva que deve exercer na Amazônia de hoje.
Nas democracias, a voz da sociedade exprime suas expectativas ao poder constituído, mas também propõe os meios que julga adequados para atendê-las.
O relatório faz parte de uma das missões do projeto “Bioeconomia Inclusiva na Amazônia – Fortalecimento de cadeias produtivas sustentáveis”, Edital CNPq 040/2022 Pró-humanidades (Linha 3B – Políticas públicas para o desenvolvimento humano e social).
O objetivo geral da pesquisa em que essa missão está inserida é o de fortalecer o desenvolvimento de cadeias de valor no bioma Amazônico, com o intuito de aumentar a renda e o bem-estar das comunidades locais, ao mesmo tempo em que se conserva a biodiversidade, a floresta e os rios, e se aumenta a capacidade do sistema de estocar carbono.
No caso específico buscou-se avaliar a estratégia de manejo do pirarucu, as condições de vida das comunidades, e a estrutura das associações na RESEX Médio Juruá e RDS Uacari do estado do Amazonas.
Há duas unidades de conservação de uso sustentável localizadas na região do médio rio Juruá no município de Carauari. A Reserva Extrativista do Médio Juruá (RESEX Médio Juruá) foi criada em 1997, por lei Federal, com uma área de 286.933 hectares, com 19 comunidades. É administrada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
A Reserva de Desenvolvimento Sustentável Uacari (RDS Uacari) é uma unidade de conservação estadual criada em 2005, com área de 632.949 hectares, com 32 comunidades. É gerida pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Amazonas.
A atividade econômica das comunidades é baseada no extrativismo. Além do manejo do pirarucu, as comunidades também atuam na pesca de outras espécies como tambaqui, Matrinxã, entre outros, produzem farinha, óleos, principalmente de murumuru e andiroba, coletam e vendem açaí, banana dentre outros.
A pesquisa de campo foi realizada com o objetivo realizar um diagnóstico nas comunidades visando analisar o bem-estar das populações, bem como obter dados para compor os indicadores e métricas que permitam acompanhar o desenvolvimento da cadeia do pirarucu nesta região, bem como comparar estratégias distintas de atuação das meso-instituições em relação ao que foi identificado na RDS Mamirauá. Tais indicadores e métricas, quando desenhados para o monitoramento de cadeias da sociobiodiversidade, precisam ser adequadas às distintas realidades em um processo social de construção de conhecimento coletivo baseado na ciência cidadã. Para tanto, compreender a percepção dos atores locais, comunidades e manejadores, é condição essencial. Além disso, o estudo da cadeia visa incentivar a formulação de políticas públicas para manutenção do bem-estar dessas populações.
A coleta de dados se deu por meio de entrevistas com organizações de apoio ao manejo e aplicação de questionários com manejadores e associações. A data escolhida se deve à oportunidade de entrevistar vários manejadores, uma vez que na comunidade Roque haveria uma Assembleia A ASPROC (Associação dos Produtores Rurais de Carauari) com cerca de 700 pessoas, a grande maioria manejadores.
Saímos de São Paulo no sábado, dia 30/03/24, às 11h30, pegamos um voo para Brasília, em seguida de Brasília para Manaus, chegamos às 17h. (duração 7h30)
No domingo, pegamos um voo para Tefé às 7h30, chegamos às 8h30. A princípio, iríamos pegar a lancha de Tefé para Carauari na segunda, dia 01/04/24, entretanto essa lancha foi cancelada e só conseguimos ir para Carauari na terça, dia 02/04/24. (duração 1h)
Saímos de Tefé às 23h30, do 02/04/24 e chegamos em Carauari às 00h30 do dia 04/04/24. (duração 25h)
Dormimos em Carauari e, logo pela manhã ainda no dia 04/04/24, às 9h30, pegamos um bote (voadeira, motor 60) para a Comunidade do Roque, local onde estava ocorrendo a Assembleia Geral dos Manejadores do Médio Juruá, realizada pela ASPROC. Chegamos à comunidade às 12h30. (duração 3h)
Ficamos na comunidade nos dias 04 e 05/04/24, e voltamos para Carauari no dia 06/04/24. Saímos da comunidade às 10h e chegamos em Carauari às 12h30. (duração 2h30)
Saímos de Carauari para Manaus no dia 09/04/24, às 11h e chegamos às 14h20. (duração 3h20)
Retornamos de Manaus para São Paulo no dia 11/04/24, saímos às 3h30 e chegamos às 11h em São Paulo. (duração 8h)
Sendo assim, somadas, foram:
19h50min de voo
30h30min de barco
Esse total (50h20min) representa 26% das horas úteis de viagem (considerando os 12 dias e 8h por dia), o que mostra o quanto é desafiadora a logística no Amazonas.
Atividades realizadas
31/03/24 – domingo
Pela manhã, visitamos o mercado municipal de Tefé, identificamos a venda de pirarucu em manta, seco e salgado em uma pequena feira ao lado do mercado municipal, onde o pirarucu estava sendo vendido a R$20,00/kg. Teoricamente, esse peixe não poderia estar sendo vendido, dado que esse é o período de defeso da espécie.
À tarde, realizamos o treinamento em equipe para aplicação dos questionários, discutimos a pertinência e dificuldades de cada questão, identificamos as alterações necessárias e preparamos o material para a realização do pré-teste que seria realizado na terça.
01/04/24 – segunda-feira
Pela manhã, fizemos uma visita ao IDSM, conversamos com o Pedro Nassar sobre o funcionamento do instituto e as principais atividades desenvolvidas, posteriormente realizamos uma visita ao acervo biológico da Amazônia no Centro de Coleções Biológicas e Pesquisas Terrestres.
Em seguida, conversamos com a Ana Claudia, gestora de recursos pesqueiros do IDSM, sobre a capacitação que será realizada para as associações da RDSM em parceria com a GIZ, e realizamos a gravação do relato realizado por ela sobre lições aprendidas de outras capacitações realizadas anteriormente por eles e outras instituições. Além disso, falamos sobre a possibilidade de um projeto de monitoramento dos lagos por drone, visando diminuir o ônus à comunidade na vigilância. Finalmente, conversamos sobre a possibilidade firmar um termo de cooperação para acesso e análise dos dados registrados referente aos mais de 20 anos de manejo realizado na região de Mamirauá, visto que, atualmente o IDSM não dispõe de profissional para realizar tais análises. Os dados englobam informações como quantidade de pirarucus nos lagos, cotas de pesca, quantidade pescada, tamanho, sexo, peso etc.
02/04/24 – terça-feira
Realizamos os testes dos questionários com 2 manejadoras de pirarucu e um presidente de uma associação local, a de Produtores Rurais do Setor São José (William Carlos dos Santos da Silva). Uma das entrevistadas foi a Lilian Gonçalves da Silva, ganhadora do prêmio mulheres das águas, gravamos um depoimento que ela nos concedeu sobre a importância do manejo para o empoderamento das mulheres. Esse pré-teste nos ajudou a identificar problemas com algumas questões, principalmente no que se refere a termos que não eram facilmente compreendidos, bem como repensar a forma como algumas perguntas seriam realizadas.
À noite pegamos a lancha para Carauari.
03/04/24 – quarta-feira
Durante a viagem na lancha, revisamos os questionários para deixar tudo pronto para impressão, visto que foram realizadas alterações significativas na ordem e escrita de algumas questões. Chegamos em Carauari meia noite.
04/04/24 e 05 – quinta-feira e sexta-feira
Na quinta-feira de manhã fizemos a impressão dos questionários atualizados e fomos para a comunidade do Roque, a qual possui atualmente cerca de 653 moradores e 160 famílias.
Ao chegar, à assembleia comemorativa dos 30 anos da ASPROC e “15 anos do comércio ribeirinho” já estava em andamento, desde o dia anterior. Fomos muito bem recebidos e acolhidos pela comunidade. Ficamos alojados nas casas dos moradores da comunidade. A organização do evento nos forneceu um espaço para apresentar o nosso projeto. Havia representantes de várias organizações parceiras e de apoio, como ICMBio, BNDES, Fundo Vale,Natura, Banco do Brasil, IABS, MMA, MCM.
Programação da Assembleia: “15 Anos do Comércio Ribeirinho e 30 anos da ASPROC”
Realizamos os questionários e entrevistas durante os dias do evento. Ao todo foram 50 questionários respondidos de manejadores e associações e duas entrevistas com o Manoel Cunha, gestor da reserva e Advaldo Dias, presidente do Instituto Chico Mendes. Abaixo fotos da comunidade Roque.
06/04/24 e 07/04/24 – Sábado e domingo. Retorno para Carauari. Início da tabulação dos questionários.
08/04/24 – Segunda feira, visita à sede da ASPROC.
09/04/24 – Viagem para Manaus
10/04/24 – Quarta-feira, visita ao INPA, entrevista com o Professor Adalberto Val, diretor do INPA, sobre os desafios da cadeia do pirarucu.
11/04/24 – Quinta-feira, volta para São Paulo
Conclusão
A viagem foi exitosa e bem proveitosa. Conseguimos alcançar a meta proposta: realização das entrevistas e dos questionários. Além disso, tivemos a experiência de conhecer in loco as ações coletivas do manejo do pirarucu em reservas extrativista e de desenvolvimento sustentável, que visam de elevar o bem estar das populações mantendo a floresta em pé.
Grandes expectativas são depositadas em uma bioeconomia dos produtos florestais não madeireiros (PFNM) como um meio de conciliar conservação e desenvolvimento.
Mas será que essas expectativas são justificadas e respaldadas por evidências?