Este texto é uma forma de devolutiva e, acima de tudo, um profundo agradecimento a todas as comunidades, produtores, extrativistas, pescadoras e especialistas que generosamente compartilharam seus conhecimentos, histórias e desafios conosco. A pesquisa sobre a bioeconomia na Amazônia, realizada pela FEA-USP e pelo INPA, com o apoio fundamental do CNPq e da Fapesp, só se tornou possível graças a essa colaboração direta e transparente.

Quando pensamos na Amazônia, nossa mente tende a gravitar em torno de imagens grandiosas e, muitas vezes, polarizadas. De um lado, a visão de uma natureza intocada, um santuário de biodiversidade. Do outro, as manchetes alarmantes sobre desmatamento e conflitos. Ambas as visões, embora contenham elementos de verdade, ocultam a complexidade pulsante que existe entre esses extremos.

Por trás de produtos que hoje encontramos em gôndolas de supermercados do mundo todo — como o açaí, o cacau e os peixes de sabor único — existem cadeias de valor repletas de histórias humanas, desafios inesperados e soluções inovadoras que nascem do conhecimento tradicional. Essas cadeias não são linhas retas e anônimas; são redes tecidas por pessoas cujas vidas, saberes e desafios estão intrinsecamente ligados à floresta.

Este artigo se afasta dos rótulos e mergulha nessas narrativas. Extraídas diretamente das vozes de quem vive e trabalha na Amazônia, estas são cinco realidades surpreendentes da bioeconomia regional que vão desafiar e, talvez, transformar a sua percepção sobre o futuro da floresta.

A colheita de açaí é a atividade extrativista mais perigosa da Amazônia

Na Comunidade Quilombola de Guajará-Miri, Joelson Cunha e Samuel Galiza Monteiro nos contaram sobre a transição de sua comunidade, que antes vivia da roça e da produção de carvão, para o açaí como principal fonte de renda e pilar de sua identidade.

A imagem global do açaí é a de um superalimento roxo vibrante, sinônimo de saúde, bem-estar e energia. Mas por trás de cada tigela servida em um café urbano, há uma realidade invisível e arriscada. Para os extrativistas familiares, a colheita do fruto, conhecida como “peconha”, é a atividade mais perigosa da floresta. O trabalho exige escalar açaizeiros de dezenas de metros, até 30 vezes por dia, usando apenas a força do corpo e uma tira amarrada aos pés. É um esforço tão extremo que o corpo precisa ser condicionado desde a infância para suportá-lo, e impossível de ser feito no calor do sol, quando o tronco queima a pele.

Os perigos são normalizados: quedas graves, cortes profundos de terçado e o desgaste físico constante. O risco é tão onipresente que as cicatrizes se tornam uma marca da profissão. Em um estudo para o Tribunal Regional do Trabalho, o sociólogo Manuel Potiguar, do Instituto Pabiru, ouviu uma frase que resume a brutalidade dessa rotina:

“Não existe quem não tenha sofrido acidente, não tem quem não tenha cicatriz que trabalha na cadeia do açaí.”

Essa frase contundente revela o abismo entre a estética da saúde vendida pelo mercado e o custo físico pago por quem está na base da cadeia. O vigor associado ao açaí contrasta diretamente com os perigos enfrentados por aqueles que o colhem.

2. Existe uma escola na Amazônia onde o calendário letivo segue a safra da castanha

Na Comunidade São Francisco de Iratapuru, em Laranjal do Jari/AP, encontramos Maria José. Presidente da associação Bio Rio, sócia da cooperativa Comaru e mãe, ela também está cursando Pedagogia, um detalhe que ilumina sua luta pela transmissão do conhecimento. Sua história reflete a força da organização comunitária: a união das famílias, articulada em torno da cooperativa Comaru e da associação Bio Rio, foi crucial para superar desafios, como a reconstrução da fábrica de beneficiamento após um incêndio, e para estabelecer parcerias duradouras, como o contrato com a Natura.

Enquanto os riscos da colheita do açaí permanecem em grande parte invisíveis, outras comunidades estão ativamente remodelando sistemas públicos para refletir suas realidades. Na comunidade de Iratapuru, no Amapá, a educação não se desconecta da floresta; ela se adapta aos seus ciclos. Lá, o calendário escolar é modificado para se alinhar à safra da castanha-do-pará, principal fonte de renda e pilar cultural da comunidade.

Durante o período de colheita, as aulas são ajustadas — naquele ano, por exemplo, as férias ocorreram de 5 de abril a 7 de maio — para que as famílias possam ir aos castanhais. O objetivo não é o trabalho infantil, mas a transmissão cultural. A mudança foi solicitada pelos próprios pais para que as crianças possam “conhecer a nossa tradição”. Elas aprendem sobre o trabalho que sustenta a comunidade, desde a coleta do ouriço até os perigos inerentes à atividade, como a “subida nas cachoeiras”, uma navegação arriscada que exige canoeiros profissionais.

Essa adaptação é uma demonstração poderosa de como as políticas públicas podem respeitar e integrar os saberes locais, em vez de impor um modelo externo. É o reconhecimento de que a floresta também é uma sala de aula, essencial para a transmissão de uma herança que garante a sobrevivência tanto das pessoas quanto do ecossistema.

3. As abelhas sem ferrão são mais valiosas pela polinização do que pelo mel

Da adaptação de um sistema inteiro como uma escola, passamos para uma inovação que acontece no quintal de casa, mas com um impacto igualmente transformador. A meliponicultura, criação de abelhas nativas sem ferrão, vai muito além da produção de mel. Embora seu mel seja valorizado, o principal benefício para o agricultor é um serviço ecossistêmico invisível: a polinização.

Essas abelhas são polinizadoras eficientes de culturas de alto valor, como o próprio açaí e o cacau, aumentando a produtividade das plantações e, consequentemente, a renda do produtor. Diferente da apicultura tradicional, a criação é segura e acessível, podendo ser feita ao lado de casa por mulheres e crianças. A relação é tão simbiótica que é descrita de forma poética:

“As abelhas adoçam a vida dele para ele poder produzir em uma outra cultura.”

Vista também como uma terapia, a meliponicultura representa um modelo de negócio em que o valor não está apenas no produto extraído, mas no serviço que fortalece todo o sistema produtivo, ajudando a manter a “floresta em pé”.

Mulheres pescadoras estão quebrando tabus no manejo do pirarucu

Assim como a polinização revela o valor oculto das abelhas, um número crescente de mulheres está tornando visível seu papel fundamental em uma das atividades mais emblemáticas da Amazônia. O manejo do pirarucu, o gigante dos rios, é tradicionalmente masculino, exigindo força e longos períodos longe de casa. No entanto, mulheres pescadoras estão desafiando estereótipos, assumindo todas as etapas do processo e encontrando orgulho e independência econômica.

Elas participam da contagem dos peixes, da pesca e do tratamento do pescado, quebrando paradigmas com uma determinação feroz. A fala de uma delas ao ser direcionada para a cozinha ilustra essa transformação:

“Mulher para a cozinha? Eu digo: Quê? Não, eu sou pescadora, então eu vou pra cá… Agora não quero mais saber de cozinha, vou agora é tratar o pirarucu.”

O manejo sustentável do pirarucu é um exemplo poderoso de como o saber tradicional se alia ao científico. Na comunidade de Santa Teresa, as pescadoras Maria de Socorro, Deusinete, Mariana, Eci e Rita, participantes do acordo Pantaleão, nos mostraram isso na prática.

Essa força, contudo, vem com sacrifícios profundos. Elas enfrentam o medo das tempestades súbitas nos rios, as “banzetas”, e a angústia de estar longe da família. Uma delas descreve o desespero de receber a notícia de um filho doente enquanto está isolada no rio, incapaz de ajudar. Sua resiliência não apenas sustenta suas famílias, mas redefine a dinâmica social das comunidades ribeirinhas.

5. O “preço justo” pode fazer o valor do cacau amazônico saltar até 250%

Da inovação social das mulheres pescadoras, chegamos a uma inovação econômica que também quebra um sistema antigo: o do mercado de cacau, frequentemente dominado por atravessadores que pagam preços baixos.

A cadeia de valor do cacau na Amazônia, presente em rios como Madeira, Purus, Juruá e Japurá, e no município de Guajará, é marcada por uma complexa estrutura de mercado. A figura dos “atravessadores” conecta os produtores ribeirinhos às indústrias, mas também cria um gargalo na formação de um preço justo. A frustração com um mercado que trata seu produto como commodity é evidente:

“Eu tenho um preço pré-estabelecido aqui, é commodity. […] O que que eu posso agregar nesse produto para ele ser transformado em valor ou em preço? Ele é de agricultura familiar, é de sistema agroflorestal, tem certificação, rastreabilidade… Aí tu vai somando. Eu pergunto: o mercado paga esse diferencial? Não. E aí as pessoas ficam desestimuladas.”

No entanto, a discussão não para na queixa; ela aponta para soluções. O Técnico da CEPOTX de Altamira, PA, Jedielso Oliveira, detalhou um modelo concreto de precificação justa, baseado em agregar valor sistematicamente: um bônus de até 70% pela qualidade da fermentação do cacau, +30% por ser orgânico, +50% por conformidade com práticas de ESG (ambiental, social e governança), e valores adicionais por notas sensoriais distintas. Esse caminho mostra que é possível construir um mercado que remunere o cuidado, a qualidade e a sustentabilidade, transformando a frustração em um plano de ação.

Somados, esses bônus podem representar um aumento de até 250% sobre o preço de mercado. Esse modelo aponta um caminho concreto para uma economia que não apenas extrai, mas que valoriza o cuidado, a técnica e o compromisso socioambiental, transformando um commodity em um produto de altíssimo valor agregado.

Novos modelos de negócio estão provando que é possível criar um sistema mais justo, que recompensa a qualidade e a sustentabilidade, mudando a lógica de valorização da matéria-prima para o processo.

A compreensão das cadeias de valor, as pessoas e o futuro da Amazônia

A bioeconomia amazônica é, em sua essência, feita de pessoas. Suas histórias revelam um universo de inovações, desafios e saberes que os rótulos de “sustentável” ou “produto da floresta” raramente conseguem capturar. Cada uma dessas realidades — do risco invisível na colheita do açaí à sofisticação de um calendário escolar adaptado aos ciclos da natureza — nos mostra que as soluções mais eficazes nascem do conhecimento de quem vive o dia a dia da região.

Entender essa complexidade é o primeiro passo para construir um futuro verdadeiramente justo e sustentável para a Amazônia. Afinal, depois de conhecer essas histórias, como podemos apoiar uma bioeconomia que valorize não apenas os produtos da floresta, mas principalmente as pessoas que a mantêm viva?

Em nome da FEA-USP, INPA, CNPq e Fapesp, reforçamos nosso agradecimento a todos os participantes desta pesquisa. Suas vozes e saberes não são apenas dados de pesquisa; eles demonstram que a construção de uma bioeconomia justa e sustentável para a Amazônia depende, antes de tudo, de resolver a equação fundamental do preço justo e da valorização da contribuição necessária das pessoas que vivem na floresta e da floresta.