Por Fernando Facury Scaff, superintendente jurídico da USP, e Emmanuel Zagury Tourinho, reitor da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Publicado em 15/08/2024 no Jornal da USP
No dia 12 de agosto, foi realizada, no auditório da Biblioteca Brasiliana Mindlin, a abertura da terceira edição do evento multidisciplinar USP Pensa Brasil, coordenado pela vice-reitora da USP, Maria Arminda do Nascimento Arruda. A conferência de abertura foi realizada pelo reitor da Universidade Federal do Pará, Emmanuel Zagury Tourinho, discorrendo sobre múltiplos aspectos das implicações sobre o meio ambiente na Amazônia.
Tourinho iniciou sua fala destacando as relações de parceria entre a USP e a UFPA e mencionou a importância para o Brasil da realização da Conferência das Partes sobre Meio Ambiente, a COP 30, que ocorrerá em Belém, Pará, Amazônia, em novembro de 2025. Comentou, também, sobre quatro pontos de relevo para se pensar a Amazônia, que são:
(1) a complexidade da realidade amazônica;
(2) o ponto de não retorno dos sistemas socioculturais que têm mantido a floresta em pé;
(3) os riscos dos novos modelos de bioeconomia;
(4) e a não coincidência entre energia limpa e sustentabilidade.
Por fim, ele indicou que estes quatro temas podem ser um ponto de partida para a construção de agendas de pesquisa colaborativa entre universidades amazônicas e não amazônicas, em particular entre a UFPA e a USP.
Leia na íntegra a fala do professor Tourinho:
A cooperação entre as universidades para a promoção da agenda da sustentabilidade
Nesta abertura da terceira edição do Seminário USP Pensa Brasil, que tem como tema a COP 30, tratarei da colaboração entre as nossas universidades e, em particular, do que uma universidade da Amazônia, como a Universidade Federal do Pará, tem a oferecer no debate colaborativo sobre a questão ambiental e a crise climática. Peço licença para fazer isso reiterando algumas observações que apresentei em momentos recentes.
Começo dizendo que as relações entre UFPA e USP têm enorme valor para o fortalecimento da pesquisa na Amazônia e avançaram muito nos últimos tempos, tanto em extensão quanto em qualidade. Somos duas das maiores universidades brasileiras – a USP é a nossa maior Universidade pública; e a UFPA é a segunda maior universidade federal do país, além de ser a maior instituição acadêmica e científica de toda a Pan-Amazônia.
Somos, também, as duas maiores produtoras de ciência sobre a Amazônia (segundo a Web of Science, principal base de dados internacional) e estamos entre as cinco maiores instituições do País em número de programas de pós-graduação, onde grande parte da ciência brasileira é produzida. Além disso, nossas duas universidades deram início a novos projetos que buscam sintonia com grandes desafios da Amazônia e do País hoje: a UFPA criou o Cisam, o Centro Integrado da Sociobiodiversidade da Amazônia; e a USP criou o Ceas, o Centro de Estudos da Amazônia Sustentável.
No caso do Cisam, acrescento que envolve a formação e consolidação de oito redes temáticas, cooperativas em pesquisa e extensão, com participação de pesquisadoras(es) das 13 universidades federais sediadas na Amazônia.
Penso que a interação entre o Cisam/UFPA e o Ceas/USP pode gerar experiências modelares sobre a cooperação nacional com foco na Amazônia e, para tanto, partimos do reconhecimento mútuo da capacidade científica. Houve uma época em que uma cooperação mais intensa era improvável, pois havia restrita capacidade de fazer ciência na Amazônia. Hoje, esse cenário mudou. Temos instituições muito fortes e um sistema de pesquisa e de pós-graduação robusto na região.
Nossas capacidades são complementares e nossas ações podem contribuir substancialmente não apenas para nos colocar adiante na fronteira do conhecimento em muitas áreas, mas também, e muito importante, para dar à sociedade brasileira condições de compreender e tomar as decisões corretas em políticas públicas que impactam o futuro do País e, em particular, o destino das populações que vivem no território amazônico. Pensamos, na UFPA, inclusive, que empoderar, com ciência, as populações locais para a defesa de seus direitos e de seus territórios constitui uma das principais contribuições que a ciência na Amazônia pode dar.
Assim, embora o tema da COP 30 seja bem mais abrangente, limito minhas considerações ao que acontece na Amazônia. A contribuição diferencial que pesquisadoras e pesquisadores da Amazônia têm a oferecer relaciona-se à maior familiaridade que possuem com a realidade regional, construída ao longo da convivência com o ambiente natural e com as populações amazônicas, com as consequências dos projetos lá implementados nas últimas décadas para a exploração de suas riquezas e com as carências e ameaças que são o cotidiano de seus povos.
O que chamamos de Amazônia, vista de perto, são muitas Amazônias, compostas por grande diversidade de paisagens, de arranjos socioespaciais, de dinâmicas sociais e territoriais, de populações e povos com culturas e entendimentos próprios acerca do que somos e do que deve ser o nosso futuro.
Destaco brevemente quatro pontos que ilustram os desafios de pensar a Amazônia, começando pelo tema da complexidade da região. Uma imagem sugerida pela professora Ana Cláudia Cardoso, pesquisadora da UFPA, ilustra bem este ponto. Segundo ela, os esforços para compreender e definir estratégias de intervenção na Amazônia são comparáveis à tentativa de resolução de um cubo mágico. Tenta-se ajustar um ou outro pedaço do quebra-cabeça e, “quando a solução parece próxima, percebem-se as demais facetas do objeto incompletas”.
Questões ambientais na Amazônia estão, por exemplo, intricadamente articuladas a questões fundiárias, a problemas de saúde pública, a sistemas de transporte, ao acesso à educação e segurança, dentre outros.
A dificuldade de lidar com a complexidade da realidade amazônica é inescapável para todas as pessoas e instituições que voltam suas vistas para a região e está presente em atividades de toda ordem, sejam elas científicas, de formulação e execução de políticas públicas, ou mesmo de apoio a projetos concebidos por atores locais. Há necessidade de reconhecer que os problemas complexos da Amazônia requerem soluções originais e não prontamente acessíveis. Importar soluções de outros contextos tem sido uma receita certa de fracasso em muitas políticas concebidas para a região.
Além disso, o tempo representa uma pressão complicadora. É urgente salvar a floresta, mas não é possível fazê-lo de uma hora para outra, nem mexendo em apenas umas poucas peças do cubo. É preciso modelar soluções e não há consenso sobre o recorte adequado para o início da modelagem: se determinados problemas, determinadas faixas territoriais, determinadas populações alvo etc.
O segundo ponto diz respeito diretamente às dinâmicas de vida das populações. A COP tem como foco a questão climática e há consenso internacional sobre a importância da Floresta Amazônica para conter o aquecimento do planeta com serviços ecossistêmicos, como sequestro e armazenamento de carbono, e produção e distribuição de chuvas (rios voadores).
Hoje, há reconhecimento e algum consenso sobre o papel das comunidades tradicionais na conservação do bioma. Sem o conhecimento ancestral e as práticas históricas de manejo e conservação da floresta desenvolvidas por populações indígenas, quilombolas, extrativistas e ribeirinhas, será muito improvável manter a floresta de pé. As pressões que essas populações sofrem hoje, no entanto, acendem um alerta que gostaria de formular com uma analogia ao que se fala sobre a floresta.
Há uma preocupação global com o eventual ponto de não retorno da Floresta Amazônica, algo previsto para ocorrer daqui a pouco mais de duas décadas. Nas condições atuais, é certo que ocorrerá. Mas há, além disso, outro risco. Estamos muito próximos de um ponto de não retorno do tecido social das populações amazônicas, dos sistemas culturais que exerceram o papel de alicerce para arranjos que sustentaram a floresta em pé por séculos. A lógica das transformações em curso, por vários caminhos, mas, especialmente, pela insegurança fundiária, tende a romper as conexões dessas populações com seus territórios, a afastá-las das terras que têm ocupado ou a forçá-las a um uso diverso do que tem sido a regra e do que garante a integridade do bioma.
São parte do cotidiano de quem vive nas entranhas da Amazônia a ameaça de perda do território com o avanço da fronteira do agronegócio, com todas as suas implicações; a contaminação dos rios por mercúrio e, como decorrência, das pessoas que vivem e se alimentam dos rios; a contaminação de rios e florestas por resíduos da atividade legalizada de exploração e produção mineral; a invasão de terras indígenas e quilombolas por grileiros, garimpeiros ilegais e outros criminosos; doenças endêmicas como malária, febre amarela, tuberculose e hanseníase; conflitos fundiários, com assassinato frequente de lideranças indígenas, quilombolas, de trabalhadores rurais e defensores de direitos humanos; e o tráfico de drogas. Isso tudo associado a alguns dos piores indicadores sociais, onde apenas 50% das residências recebem água tratada e pouco mais de 20% estão ligadas a uma rede de esgotamento sanitário.
Ninguém pode dizer que a floresta permanecerá de pé com a desorganização das comunidades tradicionais, seus deslocamentos forçados, seu assassinato deliberado, seu adoecimento em massa ou sua submissão a outros sistemas de organização social e econômica. Proteger esses sistemas sociais é tão urgente quanto proteger as árvores.
Como a atenção do mundo não se volta com a mesma intensidade para esta dimensão do “risco amazônico”, está muito mais sob a nossa responsabilidade garantir que seja adequadamente considerado. Também, por isso, as populações da Amazônia precisam ter poder de decisão sobre novos projetos para a região e precisam ser beneficiárias diretas desses projetos, não apenas receber “compensações”.
O terceiro ponto relaciona-se diretamente às pressões sofridas pelas populações tradicionais, em suas articulações com a atual ênfase na “bioeconomia” como solução para sua sobrevivência. O aproveitamento sustentável de produtos da floresta e dos rios sempre foi base de sustentação de comunidades amazônicas. Todavia, a bioeconomia que, por séculos, esteve vigente, era uma espécie de sociobioeconomia, em que a natureza e a sociobiodiversidade eram conservadas, com alta taxa de apropriação, pelas próprias comunidades, dos recursos financeiros gerados. O que se coloca em debate agora é, com frequência, algo muito diferente, por exemplo articulado à industrialização de produtos da floresta ou à expansão do comércio para um mercado global, gerando divisas internacionais, o que envolve um risco de reprodução do que assistimos em outros ciclos de exploração de riquezas da Amazônia. A mudança em curso não acontecerá sem consequências.
Bioeconomia significa abordagens diversas para o aproveitamento dos recursos da biodiversidade. Gostaria de sugerir que essas abordagens variem ao longo de continuuns com gradientes variados de três componentes: (a) o aproveitamento econômico na exploração dos recursos; (b) a conservação da integridade dos ecossistemas; e (c) o fortalecimento de sistemas socioculturais. Esses três componentes compõem uma espécie de feixe de múltiplas variáveis, irredutíveis umas às outras e de complexa interconexão. Iniciativas que geram alto aproveitamento econômico dos recursos da biodiversidade podem ou não garantir a conservação da integridade dos ecossistemas e fragilizar sistemas socioculturais; podem ou não garantir, de modo imediato, alguma taxa de conservação do bioma, sem proteção dos sistemas socioculturais.
Se repetirmos experiências passadas, é muito provável que a biodiversidade da Amazônia venha a dar sustentação a projetos em bioeconomia com enorme sucesso econômico para os seus protagonistas financeiros, incluindo os que sempre ganham com os negócios na Amazônia. Isso pode (ou não) acontecer ao custo de maior degradação (ou não conservação) de partes importantes do bioma e, sobretudo, maior empobrecimento das populações locais, inclusive com novos movimentos forçados de migração para as periferias pauperizadas das vilas e cidades.
O quarto ponto que gostaria de citar relaciona-se a uma associação equivocada, por vezes estabelecida, entre energia limpa e renovável e sustentabilidade. Energia limpa é parte da agenda de enfrentamento da crise climática, por razões óbvias, e o Brasil orgulha-se de possuir uma das matrizes mais eficientes nesse terreno, baseada no enorme potencial das bacias hidrográficas do País, com destaque para a Amazônia. Na Amazônia, no entanto, há exemplos contundentes de construção de hidrelétricas com inundação de parcelas consideráveis de florestas, com deslocamentos forçados de populações tradicionais, com comprometimento das condições de vida dessas populações e com desestruturação de seus sistemas socioculturais.
Algo semelhante vem acontecendo com fazendas de energia eólica no Nordeste (que concentra 85% da produção nacional), que têm transformado para pior as condições de vida de comunidades pobres no raio de sua abrangência e impacto, além de consequências negativas para o bioma da Caatinga. Na Amazônia, já há evidências de que interferem com voos migratórios de algumas espécies.
A pergunta, então, é: essa energia é limpa para quem? Sustentável para quem? A questão energética permite ilustrar como a sustentabilidade é matéria que exige uma abordagem multidimensional e interdisciplinar, para muito além da descarbonização e da conservação do potencial de produção. Adiciono um elemento a essa problematização, que ilustra o ponto discutido anteriormente, sobre a complexidade da realidade amazônica.
A contaminação por mercúrio é hoje um dos mais graves riscos a que estão expostas as populações amazônicas e resulta, principalmente, da atividade mineral ilegal na região, algo que acontece em uma escala maior do que se pode imaginar. Pois bem, pesquisadores da Amazônia constaram que não apenas a proximidade às áreas de mineração ilegal favorece a contaminação por mercúrio. As barragens das hidrelétricas podem conter um potencial de agravamento do problema, na medida em que favorecem a concentração de bactérias que transformam o mercúrio em metilmercúrio, a versão mais perigosa do mercúrio, que passa a ser parte da cadeia alimentar.
Segundo os pesquisadores, “evidências recentes demonstraram que as populações que vivem perto de UHEs podem ter níveis de mercúrio no cabelo semelhantes ou até mais elevados do que os níveis encontrados em populações próximas a regiões de mineração. Estes dados apoiam a noção de que as barragens têm o potencial de mobilizar mercúrio e, consequentemente, contribuir para a contaminação ambiental e a exposição humana”.
Os quatro temas citados (a complexidade da realidade amazônica, o ponto de não retorno dos sistemas socioculturais que têm mantido a floresta em pé, os riscos dos novos modelos de bioeconomia e a não coincidência entre energia limpa e sustentabilidade) podem ser um ponto de partida para a construção de agendas de pesquisa colaborativa entre universidades amazônicas e não amazônicas, em particular, entre a UFPA e a USP.
Agradeço e parabenizo a USP por esta oportunidade de diálogo, na expectativa de que nossas instituições construam, em parceria, grandes contribuições da ciência brasileira para o enfrentamento do desafio climático e, nesse contexto, de conservação do bioma e de desenvolvimento social dos povos e populações da Amazônia.