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Financiamento para a Bioeconomia no Brasil: Fontes e Destinação dos Recursos

Publicado na Climate Policy Initiative em 12 de setembro de 2024. Joana Chiavari, Miguel Motta, Cristina Leme Lopes e Ana Flávia Corleto

No Brasil, a bioeconomia emerge como um novo paradigma de desenvolvimento econômico, baseado no uso sustentável da biodiversidade para a geração de riqueza, com inclusão e justiça social, respeitando os povos tradicionais. Para viabilizar esse modelo, é essencial mobilizar recursos públicos e privados em larga escala para garantir o financiamento necessário à bioeconomia.

Nesse sentido, pesquisadores do Climate Policy Initiative/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (CPI/PUC-Rio) analisaram e quantificaram os fluxos financeiros já desembolsados que impulsionaram a bioeconomia no Brasil entre 2021 e 2023. Foram identificados os valores direcionados por fontes de recursos públicas e privadas tanto domésticas quanto internacionais. Também foram especificados os canais de desembolso, os instrumentos financeiros utilizados e os setores financiados.

Através desse exercício, é possível acompanhar a evolução dos recursos, avaliar se estão crescendo de forma compatível com a Estratégia Nacional de Bioeconomia,[1] identificar lacunas de financiamento e desenhar estratégias de investimento mais efetivas para fomentar inovações que valorizem produtos compatíveis com a floresta e demais formas de vegetação nativa e que impulsionem a economia justa, resiliente e de baixo carbono no país.

Para fins desse mapeamento, bioeconomia está sendo considerada em seu sentido amplo, como um modelo produtivo que se baseia no uso de recursos biológicos e renováveis para a produção de alimentos, energia, insumos, materiais e outros bens e serviços. Nesse conceito mais amplo, bioeconomia abrange diversos setores, incluindo agricultura e extrativismo de culturas nativas, floresta plantada, biotecnologia, bioprodutos, bioenergia e biocombustíveis. O resultado desse mapeamento identifica instrumentos consolidados que financiam setores da bioeconomia com valores expressivos, contando com vasta participação de atores privados e importante atuação do poder público. O aprofundamento sobre esses instrumentos e o papel dos atores financeiros nessa agenda demonstra que é possível ampliar o financiamento para setores estratégicos da bioeconomia, hoje subfinanciados.

Fluxos de Financiamento Climático para Bioeconomia no Brasil, 2021-2023

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Nota: Os valores referem-se à média, em bilhões de reais, para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023.
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024


Fluxos de Financiamento

Três quartos do financiamento estão fluindo para os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis, mas há desafios para promover a bioeconomia baseada em produtos oriundos da biodiversidade.

• O financiamento para bioeconomia no Brasil teve uma média de R$ 16,6 bilhões/ano entre 2021 e 2023.

• Conjuntamente, os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis foram os principais destinatários desse financiamento, tendo recebido, em média, R$ 12,3 bilhões/ano, o que equivale a 74% do total mapeado no período.

 O setor de floresta plantada concentra-se no financiamento para projetos de eucalipto e é responsável por 40% do total mapeado no período, R$ 6,6 bilhões/ano. Esse montante está concentrado em grandes projetos, com uma única empresa (Suzano) sendo responsável por 71% desse valor, através de três títulos temáticos e de um financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

• O setor de bioenergia e biocombustíveis é responsável por 34% do financiamento para bioeconomia no país, o que equivale a R$ 5,7 bilhões/ano. Instrumentos de financiamento inovadores — Créditos de Descarbonização (CBIOs) e títulos temáticos — representaram 87% desse valor, enquanto o BNDES contribuiu com 13%.

• Por outro lado, produtos oriundos da biodiversidade brasileira receberam R$ 1,4 bilhão/ano (9%), agricultura familiar recebeu R$ 1,4 bilhão/ano (8%), florestas nativas receberam R$ 0,92 bilhão/ano (6%) e políticas públicas que abarcam a agenda de forma transversal, tais como regularização fundiária e investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D), receberam R$ 0,49 bilhão/ano (3%).

Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023.
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024


Fontes de Recursos

Fontes privadas domésticas são responsáveis por 69% do financiamento para bioeconomia, mas parte relevante desses recursos são direcionados por políticas públicas.

 A maior parte dos recursos mapeados vieram de fontes domésticas (R$ 16 bilhões/ano), que canalizaram 96% do financiamento. Desse montante, 69% (R$ 11,5 bilhões/ano) provêm de recursos privados. Contudo, o setor público tem papel importante dentro desses gastos por direcionar recursos oriundos de fontes privadas através de políticas públicas, como o crédito rural privado e os CBIOs, que, juntos, representam 31% do financiamento mapeado.

• Os recursos internacionais representaram 4% do total mapeado (R$ 0,58 bilhão/ano) e foram majoritariamente provenientes de governos internacionais — com destaque para os governos da Alemanha (43%) e Noruega (34%) — e de fundos climáticos internacionais (14%), tendo sido canalizados, principalmente, por meio de crédito de baixo custo e doações. Esses fluxos internacionais representam a principal fonte de recursos para o setor de florestas nativas.

Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023.
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024


Instrumentos Financeiros

Instrumentos inovadores (títulos temáticos e CBIOs) representam 56% do financiamento para bioeconomia, mas são utilizados exclusivamente para os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis.

• Títulos temáticos são responsáveis por alavancar recursos privados para a agenda de bioeconomia e representam o principal instrumento financeiro mapeado, tendo captado R$ 6,4 bilhões/ano (38%). Os títulos temáticos foram utilizados para captar recursos para os setores de floresta plantada e de bioenergia e biocombustíveis.

• O crédito rural é o segundo instrumento financeiro mais relevante, tendo canalizado R$ 3,8 bilhões/ano, o equivalente a 23% dos fluxos mapeados no período. Dos recursos via crédito rural para bioeconomia, 36% foram canalizados pelo Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), linha que atende os agricultores familiares.

• Os CBIOs[2] representam um instrumento criado por política pública para distribuidores de combustível comprarem créditos de descarbonização, incentivando a produção e o consumo de biocombustíveis e financiando a descarbonização do setor de transportes. Entre 2021 e 2023, CBIOs mobilizaram R$ 3,1 bilhões/ano, 18% do total mapeado.

• Crédito de baixo custo foi responsável por canalizar R$ 1,8 bilhão/ano, o que equivale a 11% do que foi mapeado no período, sendo que a maior parte do recurso foi concedida pelo BNDES (86%). Os financiamentos do Banco se concentraram nos setores de bioenergia e biocombustíveis e de floresta plantada que, conjuntamente, representam 81% dos recursos do BNDES mapeados para bioeconomia. O Banco desempenha o papel de financiador por crédito de baixo custo, totalizando R$ 1,6 bilhão/ano (55%). Além disso, o BNDES também é financiador do crédito rural, totalizando R$ 1,2 bilhão/ano (44%), e gestor do Fundo Amazônia, com um total de R$ 0,02 bilhão/ano (1%).

• As despesas do orçamento público federal para financiar a bioeconomia totalizaram, em média, R$ 0,83 bilhão/ano (5%). Esses recursos são majoritariamente destinados a apoiar políticas públicas transversais para a agenda de bioeconomia (58%), com destaque para a regularização fundiária e financiamento de pesquisa e desenvolvimento. O orçamento público também tem um papel fundamental para financiar o setor de florestas nativas (33%), sendo responsável por custear despesas dos órgãos cuja atuação é fundamental para a execução de ações relacionadas à bioeconomia — em especial a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) — e despesas voltadas à proteção de povos e comunidades tradicionais.

Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023.
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, Siop/MPO, Mapa, SES/Susep, MMA, BNDES, MME, B3, NINT, OCDE-DAC, BID, Banco Mundial, GEF, GIZ, Norad, 2024


Crédito Rural e Produtos da Biodiversidade

O crédito rural é um instrumento consolidado de financiamento nacional, mas o financiamento para produtos da biodiversidade via crédito rural equivale a apenas 2% do montante canalizado para soja entre 2021 e 2023.

Nota: Os valores referem-se à média para o valor agregado dos fluxos financeiros no período analisado, corrigidos pelo IPCA, tendo como referência dezembro de 2023.
Fonte: CPI/PUC-Rio com base nos dados do Sicor/BCB, 2024

• O mapeamento do financiamento dos produtos da biodiversidade se concentrou na análise do crédito rural, que representa 99% dos recursos para o setor. Embora haja investimento relevante em produtos da biodiversidade através desse instrumento, ele é significativamente menor em comparação com outros produtos financiados pelo crédito rural. Enquanto a soja recebe R$ 84,4 bilhões/ano, bovinos R$ 75,6 bilhões/ano, milho R$ 36,3 bilhões/ano e café R$ 17,9 bilhões/ano, produtos da biodiversidade canalizaram apenas R$1,4 bilhão/ano.

• A partir do levantamento das culturas agrícolas financiadas pelo crédito rural, observamos 31 produtos oriundos da biodiversidade brasileira.[3]

• Dentre esses produtos, os que mais receberam financiamento via crédito rural foram a mandioca, totalizando R$ 580 milhões/ano (41%); o cacau, totalizando R$ 140 milhões/ano (10%); a seringueira, totalizando R$ 132 milhões/ano (9%); e o açaí, totalizando R$ 121 milhões/ano (8%). Juntos, esses produtos representam 68% do total do setor. Embora em menor escala, maracujá, abacaxi, erva-mate, carnaúba, palma, caju, castanha-do-Pará e pupunha também receberam, em conjunto, R$ 438 milhões/ano via crédito rural nas diversas regiões do Brasil (31% do total do setor).

• A Região Sul foi a que mais recebeu financiamento para produtos da biodiversidade no período de 2021 a 2023, concentrando 30% do total. A mandioca, originária da Amazônia, mas cultivada em todo o país, obteve a maior parte do financiamento (72%). O Paraná é o segundo maior produtor da raiz, por meio de agricultura intensiva em tecnologia, e o maior produtor dos derivados industriais, como a fécula de mandioca.[4]

• A Região Nordeste foi a segunda destinatária do financiamento, rerecebendo 26% do total, com destaque para a produção de cacau na Bahia. Em terceiro lugar, encontra-se a Região Sudeste, tendo recebido 21% no período, sendo a seringueira o segundo produto a canalizar mais financiamento na região (33%). Isso se justifica pelo fato de São Paulo ser o maior produtor de borracha natural no Brasil, acomodando grande parte da cultura de seringueira no Sudeste, apesar de ser uma árvore originária da região Amazônica.

 Embora a bioeconomia baseada em produtos da biodiversidade seja crucial para o desenvolvimento sustentável na Amazônia, a Região Norte obteve apenas 12% de financiamento para produtos da biodiversidade entre 2021 e 2023, ficando à frente apenas do Centro-Oeste (11%). A castanha-do-Pará, insumo típico da Região Norte que possui extrema importância ecológica, econômica e social, recebeu somente R$ 17,98 milhões/ano.

Metodologia

Este é um mapeamento inicial de fluxos financeiros para bioeconomia no Brasil, tomando como ponto de partida metodológica e de base de dados o Panorama de Financiamento Climático para Uso da Terra no Brasil.[5] A abordagem metodológica é baseada na experiência internacional do CPI em mapear o financiamento climático globalmente há mais de 10 anos, no Panorama Global de Financiamento Climático,[6] e adaptada para o cenário brasileiro. Para mapear o financiamento de bioeconomia no Brasil, parte-se dos conceitos da publicação “Bioeconomia na Amazônia: Análise Conceitual, Regulatória e Institucional”.[7]

A partir desse marco teórico para bioeconomia, os dados de uso da terra foram filtrados e categorizados. Este mapeamento, portanto, não exaure os recursos existentes por dois motivos:

• Há recursos para bioeconomia que extrapolam o recorte de uso da terra, especialmente quando analisados os gastos em pesquisa e desenvolvimento;
• As fontes de dados com a transparência necessária para tal análise são limitadas, especialmente do mercado privado de capitais e de crédito. Ademais, as bases de crédito rural não permitem identificar o método de produção de forma a avaliar a sustentabilidade dos produtos da biodiversidade.

Portanto, esta publicação serve como um ponto de partida para compreender o estado do financiamento para bioeconomia no Brasil, reconhecendo que existem fluxos adicionais que não estão contemplados nesta análise.


[1] Decreto nº 12.044, de 5 de junho de 2024 – Institui a Estratégia Nacional de Bioeconomia. bit.ly/4g65CnF.

[2] O CBIO é um instrumento estabelecido em 2019 pela Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio). Cada CBIO corresponde a uma tonelada de carbono equivalente evitada, emitida por produtores e importadores de biocombustíveis. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustível (ANP) determina metas individuais, anuais e compulsórias de redução de emissões de gases de efeito estufa (GEEs) para distribuidores de combustíveis a serem cumpridas pela compra de CBIOs. 

[3] A classificação dos produtos da biodiversidade brasileira aqui apresentada se deu com base nos produtos previstos na Política de Garantia de Preços Mínimos para os Produtos da Sociobiodiversidade (PGPMBio) e em consultas realizadas no Flora e Funga do Brasil – Reflora, administrado pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O levantamento das culturas agrícolas financiadas pelo crédito rural apontou somente o nome popular das espécies. A partir dessa informação, foi realizada a conversão pelo nome científico para consulta no Reflora, com o intuito de verificar quais espécies mapeadas são consideradas nativas. Com base nisso, foram listados 31 produtos oriundos da biodiversidade brasileira: açaí, amora, andiroba, aroeira (pimenta-rosa), baru, cacau, cajá, caju, camapu, carnaúba, castanha de baru, castanha de caju, castanha-do-Pará, cupuaçu, erva-mate, guaraná, guariroba, jabuticaba, macaúba, mandioca, mangaba, maracujá, palma, palmeira, palmito (pupunha, açaí), pupunha, seringueira, taperebá, tucum, umbu e urucum.

[4] Conab. Mandioca – Análise Mensal – Maio 2024. 2024. Data de acesso: 4 de setembro de 2024. bit.ly/3Mz68Nu.

[5] Chiavari, Joana et al. Panorama de Financiamento Climático para Uso da Terra no Brasil. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2023. bit.ly/PanoramaUsoDaTerra.

[6] Buchner, Barbara et al. Global Landscape of Climate Finance 2023. Climate Policy Initiative, 2023. bit.ly/47h7kyn.

[7]  Lopes, Cristina L. e Joana Chiavari. Bioeconomia na Amazônia: Análise Conceitual, Regulatória e Institucional. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative, 2022. bit.ly/BioeconomiaNaAmazonia.


Este trabalho é financiado por Norway’s International Climate and Forest Initiative (NICFI). Nossos parceiros e financiadores não necessariamente compartilham das posições expressas nesta publicação.
Os autores gostariam de agradecer o suporte para a pesquisa de Augusto Monnerat, Eduardo Minsky e Renan Florias. Também gostaríamos de agradecer Natalie Hoover El Rashidy, Giovanna de Miranda e Camila Calado pelo trabalho de revisão e edição de texto e Nina Oswald Vieira e Meyrele Nascimento pelo trabalho de design gráfico.

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Como salvar vidas na Amazônia

Por Jacques Marcovitch, professor sênior da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da USP, e Adalberto Luiz Val, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. Publicado em 08/08/2024 no Jornal da USP

Jacques Marcovitch
Foto: IEA/USP
Adalberto Luiz Val
Foto: IEA/USP

Milhões de vidas estão em situação de risco iminente na Amazônia, conforme alertas da Fiocruz e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Dois temas, insegurança alimentar e insegurança pública, estão aqui apresentados lado a lado, porque revelam interdependência: para a descontaminação dos rios, a preservação ambiental e a garantia do bem-estar da população, é essencial a erradicação da violência e o combate ao crime.

Insegurança alimentar

O relatório da Fundação Oswaldo Cruz, coordenado pelos cientistas Paulo Cesar Basta e Sandra de Souza Hacon, é um guia para estudos imediatos. Todos os dias, milhões de habitantes ribeirinhos da Amazônia, um dos maiores ativos ambientais do planeta, se nutrem de alimentos contaminados. O peixe, sua alimentação básica e cotidiana, é contaminado pelo mercúrio despejado nos rios que atravessam a região. Morte lenta e gradual, ocasionada por mãos assassinas de bandidos em busca de ouro. Para facilitar seu trabalho, os garimpeiros ilegais derramam esse metal líquido prateado, denso e fatal, nas principais reservas de água doce do mundo.

Imagens captadas pela organização MapBiomas revelam que as bacias mais afetadas pelo assoreamento dos rios e contaminação das águas foram as do Amazonas (o famoso rio-mar), Tapajós, Teles Pires, Jamanxim e Xingu. Em 2022, o garimpo ilegal teve um incremento de 265% em relação aos anos anteriores. Isso significa uma área de 35 mil hectares. Para que se tenha ideia da monumentalidade criminosa, basta dizer que as leis ambientais brasileiras não permitem que cada concessão ultrapasse cinquenta hectares. Isso mesmo, apenas cinco dezenas. Mas, durante quatro anos, todas as leis e multas foram, na prática, anuladas.

Quatro instituições – Fiocruz, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Evandro Chagas e Universidade Federal de Roraima (UFRR) uniram-se em um estudo sobre a contaminação dos rios no território indígena Yanomami. Os peixes recolhidos em vários pontos da bacia do Rio Branco tinham concentrações de mercúrio bem maiores ou no limite fixado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Foi detectado que os peixes barba-chata, coroataí, filhote, piracatinga e pirandirá, carnívoros, apresentam riscos elevadíssimos, e deles somente podem ser consumidos cinquenta gramas, uma vez por mês. Também apresentam alto risco os peixes dourado, mandubé, pescada, tucunaré e piranha-preta, requerendo baixo consumo.

Em síntese, a presença de garimpos em terras indígenas não traz riqueza e desenvolvimento às comunidades. Pelo contrário, deixa um legado de enfermidades e problemas ambientais que contribuem para perpetuar o ciclo de pobreza, miséria e desigualdade na Amazônia.

O que fazer?

O que é urgente e efetivo é a proteção integral dos rios. Isso quer dizer aumento da fiscalização, bloqueio das vias de acesso do garimpo, destruição das pistas de pouso, veículos e maquinário dos infratores, além de prisão em flagrante. Estas práticas, naturalmente, devem ser levadas a efeito em paralelo com a busca de tecnologias limpas.

Por meio do Global Mercury Partnership, almeja-se a disseminação de boas práticas para a descontaminação das águas na região. Merece destaque a experiência praticada nos arredores do Tapajós, onde os mineiros locais são treinados visando à redução do uso do mercúrio e à recuperação ambiental.

Instituições do saber científico no Brasil unem-se na defesa da Amazônia. USP, UFPA e Inpa e abordam no Pensa Brasil 2024 as questões levantadas e outros desafios na região. A Embrapa Florestas, a Unicamp, a UFMT, a UEM e a Coogavepe pesquisam os efeitos de quatro bioextratos produzidos a partir de uma árvore nativa da Amazônia, conhecida como pau-de-balsa (Ochroma piramidale) como tecnologia livre de mercúrio na mineração de ouro.

Em complemento, pesquisadores da Chalmers University of Technology, na Suécia, conceberam um processo eletroquímico para tratar rios contaminados por mercúrio. A solução está em um eletrodo que atrai para si os metais pesados e purifica as águas. O novo método torna possível reduzir as impurezas em 99%. O trabalho foi publicado na revista Nature Comunications.

No que se refere à saúde, é preciso incluir médicos que abordem os efeitos da exposição crônica e aguda ao mercúrio, especialistas em saúde pública que analisem padrões de grandes populações e sociólogos e antropólogos que estudem os impactos decorrentes da prospecção e extração de ouro.

Insegurança pública

Na Amazônia brasileira, o cenário é preocupante e exige uma política de segurança pública em condições de cortar o mal pela raiz. Um desses estudos é Cartografias da Violência na Amazônia. Apoiado em mapas, quadros, gráficos e tabelas repletas de informações auditáveis, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta o território em disputa neste infernal mercado de violência, suas dinâmicas, redes, efeitos ambientais e sociais e capacidades a explorar para o seu urgente enfrentamento. A invasão do crime organizado ocupou 23% do território da Amazônia Legal, adotando procedimentos iguais ou até mais nocivos do que aqueles que essas mesmas facções aplicam nas favelas metropolitanas.

Este relatório oferece indicadores preocupantes: nas cidades caracterizadas como “urbanas” da Amazônia, a taxa de mortes por violência é de 35,1 por 100 mil habitantes, 52% a mais do que a média nacional, enquanto nos municípios ditos “rurais”, por sua proximidade ao campo, a taxa média de homicídios superou em 38% a média do País, chegando a 31%.

O feminicídio fez-se rotina na Amazônia e exige combate por todos os meios, que convergem, na justa medida, repressão, educação e, sobretudo, ações preventivas, além do pronto apoio às vítimas em situação de risco. Nos municípios amazônicos, este crime apresenta uma taxa de 1,8 para cada 100 mil mulheres – superior à sinistra média nacional, de 1,4 por 100 mil.

O que fazer?

Quando se fala em Política Nacional de Segurança, é imperiosa a urgência de um modelo específico para tratar os conflitos da Amazônia. A região, por suas peculiares características geográficas, econômicas, sociais e culturais, é como um país à parte, exigindo normas próprias, embora emanadas, como estabelece a Constituição, dos mesmos poderes centrais. Trata-se de um ecossistema a ser monitorado com dados mais precisos sobre demografia, trabalho e condições de vida, rastreabilidade e acesso aos benefícios por parte das comunidades das florestas dedicados à bioeconomia de produtos não madeireiros. A experiência de uma “Casa de Governo”, instalada para monitorar as invasões de garimpeiros, poderia ser replicada no território amazônico para desconstruir as ações do crime organizado.

Conclusão

Promover o bem-estar humano e a conservação da natureza na Amazônia é a missão da Estratégia Nacional de Bioeconomia, instituída no Decreto 12.044 de 5/6/24. Trata-se de uma estratégia para o fortalecimento das cadeias de valor sustentáveis, visando estimular atividades geradoras de emprego e renda para os habitantes da floresta, permanentemente ameaçados pelo crime organizado e envenenados pelo mercúrio espalhado nos rios. A implementação da Estratégia Nacional de Bioeconomia depende da articulação de esferas de governo, incluídos os órgãos responsáveis pela segurança pública, com organizações da sociedade civil e entidades privadas. Uma articulação que exige governança adequada para eleger prioridades, determinar responsabilidades e selecionar métricas de monitoramento para a ampla divulgação dos seus resultados e impactos.

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(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)